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A democracia e o eleitor tutelado pelo Poder Judiciário


Tudo indica, segundo os especialistas do Direito Eleitoral, que estamos mais uma vez diante de uma eleição em que o resultado será muito mais consequência de decisões dos tribunais do que, propriamente, de uma escolha dos eleitores. Ruim para a democracia e nada bom para o Judiciário.

                              (Ilustração: Adams Carvalho)


A Justiça hoje ocupa quase todo o processo político: desde a condenação em ações penais e de improbidade, que implicam a inelegibilidade dos candidatos; passando pelo deferimento, ou indeferimento, de candidaturas pelos motivos mais prosaicos (como simples decisão de órgãos de categorias profissionais); até imiscuir-se na natureza e qualidade daquilo que pode ou não ser dito pelos candidatos na propaganda eleitoral. Além disso, terminado o pleito, segue-se ainda um longo período em que não se pode ter como certo o resultado das eleições, mesmo depois da certificação, diplomação e posse dos eleitos (acabamos de ver o estado do Tocantins realizar eleições a menos de um ano para o fim do mandato do governador originalmente eleito). Se não fosse o bastante, os juízes ainda podem interferir no próprio conteúdo dos mandatos, invalidando as escolhas feitas pelos eleitos (anulando ou modificando o conteúdo das leis, impondo políticas públicas, cassando nomeações etc).
 
De qualquer sorte, muito embora ninguém possa seriamente negar o fato de que, no Brasil, houve uma judicialização excessiva da vida política nacional, nada parece indicar que haverá, no horizonte próximo, um ponto de recuo, ou mesmo de inflexão, no incremento da interferência judicial nas deliberações de natureza exclusivamente política. De forma geral, o brasileiro está, sinceramente, convencido de que todos os seus problemas serão melhor resolvidos pelo Judiciário do que por ele próprio; desde pequenas questões, que deveriam ser solucionadas com uma boa convivência e respeito entre vizinhos, até matérias de maior envergadura e abrangência, como são as questões de natureza essencialmente econômica ou política, que, na maior parte dos países sérios, dificilmente são confiadas à discrição de magistrados, pois raramente podem ser submetidas a critérios puramente jurídicos.

Nas sociedades antigas e medievais, era comum e mesmo aceitável, pela simplicidade da organização social, a confusão de esferas de atuação e de decisão humana, de tal modo que questões jurídicas, econômicas, religiosas e políticas eram, de regra, concebidas, estruturadas e decididas pelos mesmos critérios e, em muitos casos, pelas mesmas autoridades, que concentravam o poder político, jurídico e, não raro, o poder eclesiástico.

Em sociedades avançadas e complexas, contudo, em razão do processo de diferenciação funcional que acompanhou e se seguiu à história de libertação da consciência e do agir humano, alguma coisa deixou de pertencer a uma esfera concentrada de poder e decisão, ou seja, algo passou a ser resolvido no âmbito de subsistemas sociais altamente especializados (economia, direito, política, ética, arte, família e saber), preservando-se, pois, um grau adequado de autonomia às operações de cada esfera de atuação humana.


No Brasil, contudo, tudo indica que estamos a experimentar um passo atrás. Não falta quem queira atribuir a instituições do Estado, como tribunais e até mesmo à polícia e às forças armadas, o poder de decidir matérias de cunho econômico, social, artístico, moral, acadêmico e também — e principalmente — político. É como se o direito devesse (re)colonizar os demais subsistemas. De fato, vai-se tornando comum assistirmos ao retorno da polícia, agora acompanhada do MP e suportada por juízes, ao recinto de museus, universidades, partidos e organizações sindicais, tudo legitimado, evidentemente, pela boa intenção de apenas fazer cumprir as leis do país.

No caso da política, não obstante o caráter peremptório e mesmo apodíctico do parágrafo único do artigo 1º da Constituição[1], a impressão que se tem é que há uma parte considerável da sociedade brasileira, especialmente da sua autoproclamada elite, que, honestamente, acredita que algumas escolhas essencialmente político-eleitorais, em nossa democracia, deveriam ser excluídas da decisão popular; não por acaso, exatamente, as escolhas que desafiam as suas expectativas. Nada mais humano do que está plenamente de acordo apenas com suas conveniências.

De partida, entretanto, uma constatação óbvia: ninguém é um democrata apenas por aceitar o resultado das urnas que atende à sua própria perspectiva. Aqui, o verdadeiro teste da democracia é quando se aceita como legítimo o resultado não desejado.

Como qualquer saber, é discutível que alguém possa dizer que conhece a essência da democracia se não está disposto a vivenciá-la. A propósito, num maravilho pequeno livro, Martin Heidegger questionava-se se é possível alguém conhecer a essência da verdade sem ser verdadeiro. Da mesma forma, perguntava-se o grande filósofo se existe algum sentido em fazer “considerações profundas sobre a honra, elaborar com cuidado o conceito geral de honra — e, ao mesmo tempo, ser de todo sem honra e agir desonradamente”[2]. Também quanto ao conceito de democracia, pode-se e até mesmo deve-se questionar com Heidegger se “não será um esforço altamente insidioso: meditar sobre a essência das coisas, pensando correr atrás de conceitos — e se esquivar às coisas elas mesmas”[3]?
 
Democracia como mero conceito não passa de utopia, ou talvez mesmo distopia. Em síntese, pura literatura; e, provavelmente, de baixa qualidade.

Antonin Scalia lembrava aos senadores norte-americanos (ver aqui) que o que faz dos Estados Unidos um país livre, isto é, uma democracia, não é fato de terem um catálogo de direitos e garantias constitucionais (liberdade de expressão, liberdade de imprensa, proibição de investigar, prender ou confiscar sem motivação razoável etc.), pois, advertia o grande magistrado, toda “república de banana” e todo ditador que se perpetua no poder também concretizam os seus abusos contra a Constituição, contra a democracia e contra o povo, suportados hipocritamente em um catálogos de direitos fundamentais (“Every banana republic in the world has a bill of rights. Every president-for-life has a bill of rights”). Na verdade, o rol de direitos fundamentais de alguns dos mais autoritários e totalitários governos da história recente, admitia Scalia, eram e são muito melhores do que o catálogo de direitos da Constituição norte-americana. Contudo, segundo esse excepcional juiz conservador, falecido recentemente, todos esses direitos são apenas “palavras no papel” (Constituição formal), quando não são vividos, respeitados e experimentados por governantes e governados (Constituição real).


Em síntese, de nada valerão os direitos fundamentais, numa democracia, se sua específica estrutura de governo não for respeitada. As constituições modernas assentam-se, sobretudo, em dois pilares: de um lado, uma estrutura democrática do governo e do Estado (separação de poderes, voto livre, igual e direto, controle, pesos e contrapesos); de outro, os direitos e garantias fundamentais. Não se afirma um sem o outro.

O Poder Judiciário, ou qualquer outra esfera de poder, sem submissão a essa estrutura de controle, sem submissão à vontade democrática do povo (Constituição, artigo 1º, parágrafo único), sem submissão ao regime de separação de poderes, converte-se apenas em mais uma manifestação de poder aristocrático, em que poucos indivíduos, normamente, assentados em boas razões (vocação divina, preparo intelectual, espírito da história etc etc etc), conferem-se o poder de decidir pela maioria.


Na verdade, como a história tem demonstrado, decisões políticas tomadas por indivíduos que se julgam excepcionalmente selecionados (aristocracia), ao fim e ao cabo, não passam de decisões governadas pelo critério mais antigo e importante de qualquer escolha política, que são os nossos próprios interesses. A grande diferença em relação à decisão política tomada numa democracia, pelo menos a única visível e demonstrável, é que a decisão aristocrática (seja de juízes, de dirigentes de algum partido, ou de um grupo de sábios), concretamente, representa a visão e os interesses de um grupo bem mais reduzido de pessoas. Na decisão democrática, diversamente, num comércio livre de ideias, pelo menos, tem-se a possibilidade de congregar e considerar um universo maior de vontades, interesses e visões de mundo. Essa a grande força da democracia (na política) e do mercado (na economia).

De outro lado, como tenho insistido em palestras e artigos (ver aqui), a desconfiança que as autoproclamadas elites (intelectuais, econômicas, morais) manifestam em relação ao eleitor comum sequer é nova, pois se insere numa vetusta tradição em que se busca contrapor as supostas misérias da democracia, na qual prepondera o cidadão comum, às supostas qualidades da aristocracia (que pode ser o partido único dos países socialistas, ou, no caso brasileiro, como muitos acreditam, o Poder Judiciário), aristocracia sempre tida por bem informada, detentora da verdade e de qualidades extraordinárias. O problema é que os fatos, sempre teimosos, não se revelam assim como planejado. Nada justifica a crença em regimes aristocráticos e muito menos a descrença no eleitor e, respectivamente, nas qualidades da democracia.
 
Segundo Ulrich Preuβ, a superioridade normativa da democracia sobre as outras formas de poder assenta-se precisamente na ideia de que o domínio apenas pode ser considerado legítimo quando ele está a serviço da vontade daqueles que são dominados, sendo por eles, direta ou indiretamente, exercido[4]. A ideia básica de que é possível compatibilizar liberdade e domínio é apenas constitutiva e característica da singularidade do modelo de domínio democrático. Outras concepções de domínio, é certo, fazem variadas promessas de salvação e com isso fundamentam a necessidade da mais profunda subordinação do indivíduo às exigências daquele plano de salvação — mas só a democracia é um modelo de autodomínio dos seres humanos. Essa qualidade única, contudo, faz da democracia suscetível, é certo, em modo muito específico, às fraquezas da natureza humana[5].

Outras formas de poder (teocracia, monarquia, aristocracia, ditadura) prometem exercer o domínio através de indivíduos especialmente qualificados (santos, homens ungidos por Deus, guerreiros, sábios e outros indivíduos com qualidades da mesma extraordinária estatura). A democracia não. Ela se contenta e promete exercer o poder através do “ordinary man”, ou seja, seu funcionamento baseia-se na intelectualidade e na moral do homem comum, ou no dizer, de Ulrich Preuβ, a democracia, diversamente dos demais sistemas de domínio, sustenta humildemente o seu funcionamento na mediocridade do ser humano, ou seja, no eleitor comum (Durchschnittlichkeit der menschen)[6].

Portanto, como na democracia o funcionamento do poder não se assenta, de saída, em nenhuma espécie de super-homem, de qualidades excepcionais, muitos críticos acreditam que, desconsiderando-se o acaso ou a sorte, apenas por uma conformação institucional extremamente hábil é que se poderá esperar que o poder acabe exercido por pessoas especialmente qualificadas. Entretanto, como se sabe, a queixa que se ouve de regra sobre um suposto fracasso da democracia funda-se basicamente na suspeita de que até agora não se conseguiu encontrar um sistema eleitoral ou mecanismo seguro de ordem a garantir que o domínio democrático traga para o exercício do poder as pessoas mais qualificadas. Mas será que essa suspeita corresponde aos fatos? Será mesmo que a democracia falha onde os demais regimes se mostram vitoriosos? Provavelmente, não!

O que se vê em toda parte, adverte Karl Popper, é que, na sua modéstia, de não prometer mais do que o exercício do poder pelo homem comum, a democracia vai se revelando muito melhor sucedida do que todos os demais sistemas, que trazem como promessa governantes extraordinariamente bem preparados. Com efeito, basta um olhar superficial pela realidade para se constatar que os países democráticos lograram trazer muito mais benefícios e felicidade aos seus povos do que as nações governadas por homens de qualidades muito especiais.

Como se sabe, os regimes totalitários e autocráticos e ditaduras de todos os tipos, mascarando-se ou não como regimes democráticos, não têm pejo em anunciar a certeza de que o governo é ali exercido pelos melhores, ao incrível fundamento de que o seu sistema de poder assenta-se em mecanismos de filtros e controles especialmente bem dispostos (que podem envolver até a manifestação de Deus, como no caso das monarquias absolutas que se autolegitimavam num sistema de sucessão hereditária certificada por uma suposta escolha divina).

A democracia, ao contrário, pressupõe a humildade de confiar o poder, como já se disse, à sua excelência, o eleitor, ou seja, ao cidadão comum. Nela, certamente, todos também têm a expectativa de que, ao final, o poder seja entregue aos melhores capacitados na sociedade, mas isso não é o fundamental para que a escolha seja considerada funcional no regime democrático. O que importa é que, disputando-se as eleições com máximo de igualdade e liberdade, os cidadãos, os homens comuns, em sua maioria, tenham a palavra final.

Aqueles que buscam e esperam, com a institucionalização de filtros e controles cada vez mais sofisticados, a segurança de que a democracia ou qualquer outro regime possa oferecer a certeza dos melhores, desconhecem a natureza das instituições humanas.

Mais uma vez Karl Popper: nenhuma instituição humana pode pretender a perfeição do governo das coisas e dos homens. Ninguém o conseguiu: nem o partido único do regime burocrático — socialista, nem o Reich dos mil anos de Hitler nem o rei filósofo de Platão. Suspeito que o Poder Judiciário, no Brasil, se aceitar a triste tarefa de substituir-se à inteligência e à vontade do cidadão comum, também não o conseguirá.

Por Néviton Guedes - Desembargador do TRF-1
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF-1, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor no UniCEUB.



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