Zika causa anormalidade em quase um terço dos filhos de mulheres infectadas na gravidez, mostra pesquisa.
Foi publicada na revista The Lancet Regional Health –
Americas a maior e mais abrangente meta-análise já feita até o momento sobre os
efeitos do vírus zika em filhos de mulheres infectadas durante a gestação. A
partir de 13 estudos nacionais que reúnem dados de 1.548 gestantes, o artigo
chega a conclusões robustas, como a de que quase um terço das crianças
apresenta alguma anormalidade em decorrência da infecção e 4% manifestam
microcefalia propriamente. Com isso, estabelece as bases para políticas
públicas assertivas, melhores cuidados e para priorizações do ponto de vista de
novas pesquisas.
Em 2015, quando a explosão de casos de microcefalia em
crianças foi associada ao zika e o Ministério da Saúde declarou estado de
emergência nacional, pesquisadores brasileiros foram obrigados a apertar o
passo para trazer respostas sobre a epidemia o mais rapidamente possível.
“Diante disso, não houve tempo para uma grande articulação nacional e
diferentes grupos conduziram estudos independentes”, lembra o epidemiologista
Ricardo Arraes de Alencar Ximenes, um dos autores da pesquisa e professor da
Pós-Graduação em Medicina Tropical da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Essa pulverização resultou em amostras menores de pacientes, protocolos
com critérios díspares e variabilidade de resultados, que aumentavam as incertezas
sobre as descobertas.
“Mas já em 2016 começamos a conversar com esses grupos para
harmonizar os protocolos e, a partir daí, consolidar os dados dos diferentes
estudos. A ciência brasileira mostrou sua maturidade e capacidade nessa
epidemia”, ressalta Ximenes, que também é professor da Pós-Graduação de
Ciências da Saúde da Universidade de Pernambuco. Dessas interações surgiu o
Consórcio Brasileiro de Coortes do Zika, que hoje conta com cientistas de 26
instituições e que possibilitou a meta-análise recentemente divulgada. “O
grande valor do artigo, o primeiro do consórcio, é a união de forças, que
permite chegar a resultados mais confiáveis”, destaca o especialista.
O trabalho contou com o apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) por meio de seis projetos.
Sistematização do conhecimento
Para serem incluídos na meta-análise, os estudos deveriam ter
confirmado o diagnóstico de infecção por zika em mulheres grávidas por meio de
exames de RT-PCR, considerados os mais confiáveis, antes de qualquer
anormalidade ser detectada no feto. Eles também precisavam ter sido conduzidos
no Brasil e acompanhar as mulheres e seus filhos até pelo menos o fim da
gestação.
Os estudos incorporados na revisão contemplaram as quatro
regiões mais afetadas pela epidemia de zika – Nordeste, Norte, Centro-Oeste e
Sudeste. Os dados de cada participante foram analisados de forma
individualizada e organizados em uma série de possíveis desfechos provocados
pelo vírus nas crianças. Eles iam de baixo peso ao nascer até microcefalia,
passando por questões oftalmológicas e neurológicas, como convulsões.
Ximenes destaca que, como a epidemia de zika foi detectada
pelo aumento de casos de microcefalia, parte da população ainda acredita que
essa é a única anormalidade mais preocupante ligada à infecção. Porém, ele
reitera que a síndrome congênita ligada ao vírus pode se manifestar de variadas
formas, que incluem dificuldades de visão e déficits motores, entre outras.
Considerando os episódios de microcefalia e as anormalidades
neurológicas, oftalmológicas e de neuroimagem (alterações nos exames que miram
o cérebro), foram encontradas alterações em 31,5% das crianças – quase um terço
da amostra. “Não é uma surpresa encontrar um número tão alto, mas agora temos
maior confiança nele”, diz Ximenes.
O virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da
Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e membro do Consórcio
Brasileiro de Coortes do Zika, pondera que as gestantes e as crianças foram
superavaliadas justamente por participarem das pesquisas: “Isso gera uma
detecção acima da média de alterações menores, que talvez passassem
despercebidas”. É possível, por exemplo, que uma anormalidade no cérebro
encontrada na meta-análise fosse assintomática, ou provocasse apenas sintomas
leves. “Independentemente disso, um terço de crianças afetadas é um dado muito
impactante, que mostra o potencial do zika”, complementa.
Além disso, Ximenes argumenta que mesmo manifestações menores
podem, com o passar dos anos, desencadear problemas.
A
microcefalia
Segundo a meta-análise, 2,6% dos filhos de mães infectadas
apresentaram microcefalia logo na primeira avaliação médica. No entanto, outras
crianças receberam o mesmo diagnóstico com o passar do tempo – no total, 4%
manifestaram o quadro ao longo dos primeiros anos de vida.
“Nossos resultados indicam que, entre crianças com
microcefalia, a fração diagnosticada de maneira tardia não é negligenciável”,
dizem os autores no artigo. “O risco de microcefalia pós-natal associada ao
zika não havia sido documentado antes. Isso demonstra a relevância de monitorar
o crescimento da cabeça de todas as crianças expostas ao vírus antes do
nascimento, mesmo se elas tiverem uma circunferência normal de crânio ao
nascimento”, arrematam.
Aliás, crianças com microcefalia associadas ao zika tendem a
apresentar diferentes disfunções simultaneamente. “Isso levou pessoas a
acreditarem que a síndrome congênita ligada ao zika é caracterizada, via de
regra, por uma série de problemas”, diz Ximenes. “Mas isso, na verdade, não
ocorre na maioria dos casos.”
Segundo a meta-análise, menos de 1% das crianças afetadas
pela infecção da mãe exibiam mais de uma anormalidade. “Ou seja, verificamos
que as manifestações costumam surgir de forma isolada”, reitera o
epidemiologista.
A descoberta serve como alerta inclusive para profissionais,
que às vezes podem não relacionar um quadro ao zika – ou mesmo deixá-lo passar
– por se tratar de um sintoma isolado. “E o diagnóstico precoce da síndrome
possibilita intervenções precoces, que beneficiam os pacientes”, afirma
Ximenes.
Fatores
associados?
Com o avançar da epidemia de zika, passou-se a avaliar se
alguns fatores modulariam o risco de microcefalia causada pela infecção durante
a gestação. Dengue, uso de larvicidas e mesmo questões socioeconômicas foram
levantadas como possíveis catalisadoras dessas complicações. “Isso aconteceu
porque muitos casos de microcefalia foram detectados no Nordeste, mas nem
tantos em outras regiões. Então se postulou que algum fator ligado à pobreza
influenciaria na associação entre zika e essas anormalidades”, esclarece
Ximenes.
Entretanto, essa hipótese perdeu força com a publicação da
meta-análise em questão. “O risco [de microcefalia após infecção por zika na
gestação] foi similar em todos os locais estudados e em diferentes condições
socioeconômicas. Isso indica que provavelmente não há outros fatores
modificando essa associação”, aponta o artigo.
Ou seja, a concentração de casos de microcefalia no Nordeste
resulta simplesmente do maior número de infecções. “Onde há pobreza, há mais
mosquito”, destaca Ximenes. “Em muitos municípios do Nordeste, o fornecimento
de água não é diário. Então a população precisa estocar água, o que aumenta os
criadouros de mosquito”, complementa.
Nogueira acrescenta que, como o Nordeste foi a primeira
região a ser afetada pelo zika no Brasil, a população local foi a que mais
sofreu com a falta de informações: “Quando o vírus chegou ao interior de São
Paulo, por exemplo, já havia mais notícias e até recomendações como a de evitar
gestações, que obviamente evitaram casos de microcefalia”.
Ele, aliás, orientou um trabalho que descartou a hipótese de
que uma infecção prévia por dengue aumentaria o risco de microcefalia após o
zika (leia mais em: agencia.fapesp.br/35942/).
Próximos
passos
“Talvez a maior limitação do nosso trabalho seja a falta de
um grupo-controle”, afirma Ximenes. Essa ausência é justificável, na medida em
que os estudos incluídos na meta-análise foram aqueles conduzidos durante a
epidemia de zika e que, portanto, precisavam trazer respostas rápidas. De
qualquer forma, futuros levantamentos podem fazer comparações com crianças
cujas mães não foram infectadas com o vírus durante a gestação para sedimentar
ou aprimorar os achados.
Os autores da meta-análise sugerem pelo menos dois caminhos
no artigo que futuras pesquisas podem trilhar: uma investigação aprofundada,
com métodos de diagnóstico avançados, para identificar complicações que podem
aparecer ou se tornar mais evidentes em crianças com microcefalia, para além de
mortes e hospitalizações; e, em crianças sem microcefalia, seria possível
estudar o risco de manifestações relacionadas ao desenvolvimento comportamental
e neuropsicomotor que seriam diagnosticadas com o avançar da idade, a partir de
ferramentas específicas.
Para além disso, Ximenes e Nogueira concordam que os dados
desse trabalho reforçam a necessidade de um monitoramento constante do zika. E,
para isso, os centros de pesquisa e as autoridades devem priorizar o
desenvolvimento de testes precisos e baratos para diagnosticar o vírus.
“Seu uso ajudaria a minimizar o risco de novas infecções se
disseminarem e causarem ondas de doença e complicações”, raciocina Ximenes.
Seria possível, por exemplo, empregar esses testes para fazer uma vigilância
ativa em locais estratégicos ou grupos populacionais específicos. A partir daí,
as autoridades públicas adotariam medidas de controle para evitar surtos e
epidemias. É importante lembrar também que, além dessas estratégias,
intervenções públicas para melhorar as condições de vida da população, o
saneamento e o controle de mosquitos podem ser mais eficazes e ter um efeito
duradouro para reduzir o risco de transmissão.
Esforços também deveriam ser concentrados na criação de uma
vacina contra o zika. “Há trabalhos nacionais e internacionais em andamento que
podem contribuir para definir uma composição ideal desse imunizante. Mas deve
demorar anos antes que se chegue a essa candidata a vacina, para então
começarmos a avaliar sua segurança e eficácia”, estima Nogueira.
Em paralelo, Ximenes dá o recado de que os filhos de mães
infectadas durante a gravidez deveriam ser avaliados pelo menos uma vez por
especialistas e acompanhados de perto mesmo se não tiverem exibido sintomas.
“No mais, a epidemia vai, mas as crianças ficam. Precisamos cuidar bem delas e
fazer de tudo para amenizar seus problemas”, completa.
Vai vir de
novo?
A atenção dada ao zika arrefeceu, em especial durante a
pandemia de COVID-19. Tanto Nogueira quanto Ximenes concordam que isso é
compreensível, até porque os laboratórios tiveram de se dedicar ao SARS-CoV-2 e
ao tremendo impacto que ele provocou na sociedade. Mas a verdade é que os novos
episódios de síndrome congênita associada ao zika também diminuíram. Se em 2015
e 2016 foram notificados 12.716 casos suspeitos, em 2022 o número ficou em 419,
segundo Boletim Epidemiológico de setembro, do Ministério da Saúde. Dos casos
identificados no ano passado, 76% seguem em investigação, mas apenas um foi
confirmado – e a criança nasceu em 2016.
“Isso é da dinâmica natural de doenças transmitidas por
vetores como os mosquitos. Elas vêm, causam uma epidemia e aí desaparecem por
um período”, analisa Nogueira. “Agora, podemos não estar vendo mais o zika
porque também não estamos fazendo testes. Só gestantes ou pacientes com
sintomas neurológicos costumam ser avaliados atualmente”, pondera.
O virologista da Famerp explica que o sobe e desce de casos
de arboviroses é multifatorial. Os números podem cair porque parte da população
desenvolveu imunidade por um curto período de tempo ao ser exposta, por alguma
reação cruzada com outro vírus (como a dengue), pela adaptação aos mosquitos
que funcionam como vetores etc. “É um fenômeno complexo, que inclusive
estudamos no nosso grupo. Mas acredito que daqui a alguns anos poderemos ter um
aumento de casos de zika e, com isso, de suas complicações”, alerta.
Diante dessa previsão, ele reforça a necessidade de uma
vacina e de novos exames, além de incentivar medidas de conscientização da
população sobre o zika e outras arboviroses.
O estudo Risk of adverse outcomes in offspring with RT-PCR
confirmed prenatal Zika virus exposure: an individual participant data
meta-analysis of 13 cohorts in the Zika Brazilian Cohorts Consortium pode ser
acessado em: www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(22)00212-5/fulltext
.
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