História de racismo e morte de menino no Recife faz 3 anos sem punição - Mãe de Miguel junta-se a apoiadores em manifestação por justiça
Luta e luto, decepção e ânimo, força e dor. Há também outros
tantos sentimentos intraduzíveis que fazem parte da rotina incansável da
pernambucana Mirtes Renata Santana, de 36 anos. “São três anos de saudade, de
dor e de frustração”. Do bairro do Barro, na periferia do Recife (PE), onde
mora, ela inicia, às 6h30, diariamente a jornada. Da cabeça, a ideia de busca
por justiça não cessa há exatos três anos.
Ex-trabalhadora doméstica, ela, atualmente, está atuando na
Assembleia Legislativa de Pernambuco, em uma função de assessoria. O percurso
envolve duas viagens de ônibus e uma de metrô. Depois do trabalho, segue para a
faculdade, onde faz o curso de direito. Está no quinto semestre. Lá quer
aprender como se faz justiça. Chega em casa tarde da noite. Nesta sexta-feira
(2), porém, a rotina será diferente.
“A concentração da manifestação será às 14h em frente ao
local do crime. Levaremos faixas e cartazes com as fotos do meu filho”. O filho
é Miguel Otávio, morto aos 5 anos de idade. Mirtes vai voltar às proximidades
do prédio de luxo residencial de onde o menino caiu, o Píer Maurício de Nassau
(conhecido como Torres Gêmeas), no Centro do Recife.
A partir de lá, o grupo fará uma caminhada de pouco mais de
um quilômetro até o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). No local, farão
ato para homenagear o garoto. Ela pede que as pessoas, se for possível,
compareçam de branco e azul.
Crime na
pandemia
Mirtes busca justiça depois da morte do filho, que ocorreu
naquele 2 de junho de 2020. A então trabalhadora doméstica levou o garoto para
o trabalho porque a creche estava fechada em função da pandemia.
Mesmo naquele momento em que o governo de Pernambuco havia
definido que o trabalho doméstico não era essencial, Mirtes teve que ir ao
serviço para não perder o emprego e a renda. Segundo o que foi testemunhado e
apurado, a empregada foi incumbida de passear com o cachorro da então patroa
dela, Sari Corte Real, enquanto a dona da casa fazia as unhas.
A empregadora, então, ficou com Miguel, mas o garoto pedia
pela mãe. Sari, com a manicure em casa e sem paciência, colocou o garoto no
elevador do prédio e apertou o botão do nono andar. Sozinho, o menino chegou a uma área de
maquinaria e caiu de uma altura de mais de 35 metros. Miguel chegou a ser
socorrido, mas faleceu.
Justiça
Sari foi condenada, em primeira instância, a oito anos e seis
meses de reclusão por abandono de incapaz, seguido de morte. No entanto, ela
recorre da decisão em liberdade, o que decepciona a mãe Mirtes. “Sou frustrada
com o Judiciário de Pernambuco”. O caso está agora na segunda instância aos
cuidados do desembargador Cláudio Jean Nogueira
Em nota à Agência Brasil, a assessoria de comunicação do Tribunal
de Justiça de Pernambuco afirmou que um recurso tramita na 3ª Câmara Criminal
do TJPE, mas em segredo de justiça. “O relatório do recurso será encaminhado em
junho para o desembargador revisor. Após a revisão, será incluído em pauta para
julgamento”, apontou. O TJPE não esclareceu para a reportagem o porquê de o
processo estar em segredo de justiça.
O Judiciário também informou que outro processo corre na área
cível em relação a pedido de indenização. “O processo tramitou normalmente e,
encerrada a instrução, o feito se encontra com prazo para alegações finais das
partes (...) Após as alegações finais, o
processo estará apto a julgamento e será incluído na lista de feitos em ordem
cronológica de conclusão”.
A assistente da acusação, a advogada Maria Clara D´ávila, diz
que não entende por que o processo penal corre em segredo de justiça. “Nós
fizemos uma apelação pedindo que fossem consideradas outras circunstâncias do
crime e também em relação à sentença. Pedimos a retirada de alguns trechos. A
decisão, apesar de ter condenado a ré, trouxe argumentos considerados
racistas”. A sentença do juiz José Renato Bizerra incluía a possibilidade de
investigar a mãe e a avó do menino por possíveis maus tratos.
O crime e o desfecho trágico fizeram com que o Legislativo
local aprovasse a Lei Miguel, que proíbe que crianças até 12 anos de idade
utilizem elevador desacompanhadas de adultos.
Resumo de
Brasil
Diante de tantos absurdos, Mirtes entendeu que todos os
acontecimentos que cercam a história de sua família têm relação com racismo.
“Eu não enxergava o racismo. Depois que eu passei por um
período de formação política, comecei a trabalhar em duas organizações
parceiras. Eu vi realmente que houve racismo no caso do meu filho.
Infelizmente, o judiciário não enxerga que houve racismo, inclusive para me
acusar”, lamenta Mirtes.
Para o professor Hugo Monteiro Ferreira, diretor do Instituto
Menino Miguel, entidade ligada aos direitos humanos na Universidade Federal
Rural de Pernambuco, o crime explicita a cultura racista e elitista no País.
“Se você quer resumir o Brasil, leia atentamente o caso Miguel. É o Brasil
explicitado. É um País de maioria negra que foi constantemente retaliada pela
lógica da branquitude e segregadora”, afirma o pesquisador.
Ferreira entende que um dos principais enfrentamentos que o
instituto realiza é em relação à violência contra a criança e contra o
adolescente, já que são situações que levam a uma convulsão social. “O
Instituto Menino Miguel atua, por exemplo, na formação de conselheiros e
conselheiras tutelares na tentativa da formação de melhora da atuação do
sistema de garantia de direitos”. Ele afirma que a legislação evoluiu ao
combater o racismo, mas essa é apenas uma das dimensões.
“A gente tem uma violência cometida até pelo próprio Estado
contra a juventude negra. E tem muitas crianças negras mortas que estão
associadas à etnia, à raça e à situação social. Não tenho dúvidas de que, se
fosse o contrário (uma criança branca tivesse morrido), a Mirtes estaria presa
e não respondendo em liberdade”, aponta.
A educadora Mônica Oliveira, da rede de mulheres negras de
Pernambuco, também considera o caso do menino Miguel emblemático porque destaca
como o racismo marca a vida de todas as pessoas negras desde antes do seu nascimento
no Brasil. “Todas essas desigualdades são comprovadas em pesquisa. O Brasil é
um país onde há pouca responsabilização pelo racismo. Do ponto de vista do
imaginário da sociedade, o Brasil é um país que teria racismo, mas não
racistas”.
Para a ativista, é necessário haver esforço grande para dar
destaque a essa e todas as violências racistas. “Racismo é um sistema de
opressão. A legislação por si só não resolve. Isso é um lado da questão. Temos
um sistema judiciário que evita condenar pessoas por esse crime porque é inafiançável
e imprescritível”.
“O dedo do
botão é o mesmo da chibata”
O historiador Humberto Miranda, também pesquisador da
Universidade Federal Rural de Pernambuco, observa que o caso do menino Miguel
tem a ver com a relação entre “Casa Grande e Senzala”. “Eu costumo dizer que a
mão que apertou o botão do elevador é aquela mesma mão da chibata. Que entendia
a criança como um futuro empregado doméstico, como um futuro trabalhador
braçal”.
Ele avalia que há na história um exemplo da objetificação
dessa criança negra, pobre e periférica que “estava incomodando” a mulher em um
momento que fazia as unhas. “A história dele revela esse ‘adultocentrismo’
branco e que nega a infância da criança negra. A gente assistiu a vários
episódios onde a criança é colocada como aquele objeto dos interesses de
adultos”
Luta
Quando chega a noite, Mirtes só pensa em estudar. Pensa no
filho e no futuro que queria para ele. Lembra que antes dizia que queria fazer
o curso de administração. O crime que o filho foi vítima fez com que ela
mudasse de ideia.
“Eu resolvi fazer faculdade de direito justamente para ajudar
outras mães a não passar pelo que eu venho passando hoje. Eu vou seguir a
carreira de advogada e, mais na frente, vou para a promotoria”.
Ela está no quinto semestre do curso e adora o que está
aprendendo, e também a força que tem recebido dos colegas e dos professores.
“Eu me deparei com situações, com vários casos e vi que não é
só o caso do Miguel. Eu falo também de crianças negras que foram mortas por
conta do racismo e crianças vivas passando por isso. Assim, eu me fortaleço”.
Aos finais de semana, diz que estuda sem parar. Olha as fotos
do filho, cuida da casa e dos sonhos para abastecer a certeza da jornada do
hoje e do amanhã. “Eu vou lutar”.
Comentários
Postar um comentário
Olá, agradecemos a sua mensagem. Acaso você não receba nenhuma resposta nos próximos 5 minutos, pedimos para que entre em contato conosco através do WhatsApp (19) 99153 0445. Gean Mendes...