Negação do Saci no Brasil revela cultura racista, dizem pesquisadores - No Dia do Saci, professora diz que personagem é guardião da floresta
Agência Brasil |
Mensagem em inglês convidando para a festa de Halloween nas
escolas não é uma cena de filme estrangeiro, mas de possíveis cenários de
escolas brasileiras em 2023. Nesta terça (31), Dia do Saci, é possível que esse
símbolo da cultura brasileira possa, mais uma vez, sofrer apagamentos e que as
crianças desconheçam o que o personagem lendário significa além da imagem do
menino preto com um gorro vermelho na cabeça. Saci, conforme explicam os
pesquisadores, é uma lenda que ensina crianças e adultos, e a negação desse
mito espelha o racismo nacional de cada dia.
Segundo pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil, contestar
a destruição das nossas lendas é uma missão para a sociedade, uma ‘travessura’
ou uma ‘traquinagem’ necessárias para fazer viver o menino cheio de energia.
“Um país que se honra tem a cultura e a educação interligadas. A gente sabe que
o nosso país tem dificuldade de respeitar as crianças. Então, esse menino vem
com uma roupagem de moleque, só que não é (apenas) um moleque”, diz a
pesquisadora Neide Rafael.
Ela é uma das professoras pioneiras no Brasil no ensino da
história e da cultura afro-brasileira pelo menos duas décadas antes de essa
conduta virar a Lei 10.639 (de 2003), que completou 20 anos e determina a
inclusão desses assuntos em sala de aula em prol de uma educação antirracista.
Guardião
Neide explica que a lenda não está revestida de maldade. “O
Saci tem uma atribuição. É o guardião da flora e da fauna. Ele precisa ser
apresentado aos estudantes como aquele que preserva a vida”, diz a professora.
O Saci, então, representa a nossa ancestralidade, identidade e valores.
“É aquele que transgride e questiona. Ele busca a liberdade
para todos os oprimidos”. A imagem do Saci com uma perna também poderia ser
utilizada para inclusão, no entender da professora. “Opõe-se a qualquer
Halloween da vida, que não tem nada a ver com a gente”.
Duas pernas
Também pesquisador do tema, o professor de arte Edmar Galiza
contextualiza que o Saci Pererê nasceu na mitologia dos indígenas Guarani, na
metade do século 18. “Era uma figura que tinha duas pernas. Ele vivia nas matas
para protegê-las dos caçadores, saqueadores e destruidores da floresta. O Saci
é uma das figuras mais reconhecidas e importantes do folclore brasileiro”,
afirma.
Mesmo assim, e com a evolução da legislação, o país não foi
capaz de alterar o racismo impregnado. Para o professor, que faz doutorado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no estudo da construção da
educação antirracista e decolonial, é “muito difícil” a escola estar fora do
lugar social em que vivemos. “A escola pode trazer mudanças, mas não sozinha. O
racismo está em todas as nossas instituições, por isso falamos em "racismo
estrutural", pois permeia nossas instituições cotidianamente”. Essa lógica
ajuda a entender que a marginalização da nossa cultura afro, indígena e híbrida
atua em prol da valorização da cultura europeia e estadunidense. “As nossas
referências vão sendo cada vez mais importadas”.
Sincretismo
Para a professora Neide Rafael, é necessário recordar que a
lenda está ligada à liberdade e à democracia do ser, que guarda elementos do
sincretismo cultural brasileiro. “O cachimbo e a fumaça vêm com os indígenas. E
o mito negro e africano são da maior importância. Ele é energia, um encantado, um
orixá dentro das religiões de matriz africana”.
Os pesquisadores entendem que a construção feita pelo
escritor Monteiro Lobato sobre o Saci distorceu a lenda. “Essa figura do menino
negro de uma perna só passa principalmente pela recriação do personagem (no
Sítio do Picapau Amarelo)”, diz o professor Edmar Galiza.
O saci de Monteiro Lobato colocaria, na avaliação de Neide, a
lenda de “maneira pejorativa”. “O Saci é guardião, é energia, liberdade mental
que todo ser humano tem , principalmente, uma criança precisa ter”, diz. Para
ela, é necessário valorizar as raízes que fazem com que as crianças brinquem de
amarelinha ou trava-línguas.
O Saci no
palco
O Saci inspirou a companhia de teatro Andaime, do Distrito
Federal, a recuperar o espírito da lenda. Em um espetáculo elaborado quando
estavam em Portugal, “O Saci é uma Peça”, os artistas criaram uma história em
que a lenda brasileira invadia o palco da Chapeuzinho Vermelho.
A atriz Tatiana Bittar explica que o trabalho é encenado em
escolas e também em espaços abertos, como parques. “É uma peça cheia de
brasilidades. Nós temos em comum sermos alimentados pela mitologia brasileira”.
Na peça do grupo, o Saci desmonta a história da Chapeuzinho.
A montagem já completou dez anos desde que foi criada. Além da peça, a
companhia criou um disco para contar a mesma história, mas adaptada à linguagem
radiofônica.
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