Pesquisador da USP mostra os efeitos da realidade virtual sobre a sociedade - Especialistas apontam prós e contras de aproximar mundo real do virtual a ponto de apagar fronteiras entre realidade e dimensão digital
Em 2024, a Apple lançou um óculos de realidade aumentada, o
Vision Pro, que, segundo palavras da própria empresa, é um “computador espacial
revolucionário que combina perfeitamente o mundo real e virtual”. O equipamento
é controlado por meio da combinação de mãos, olhos e voz e possibilita que os
usuários acessem aplicativos, assistam a filmes ou, até mesmo, tenham seu local
de trabalho cibernético.
Nesse sentido, a realidade aumentada, ou mista, transforma o
mundo real em um espaço modificado, sobrepondo objetos reais por virtuais —
assim como na tecnologia da empresa norte-americana. De maneira diferente, a
realidade virtual consiste basicamente em um universo construído totalmente de
maneira computacional e imersivo, responsável por criar imagens semelhantes à
realidade.
O professor Marcio Lobo Netto, do Departamento de Engenharia
de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São
Paulo, desenvolve sobre essa união entre tecnologia e a visão: “O sentido da
visão é o sentido mais rico, ou seja, aquele que nos dá um acesso mais completo
para entender e vivenciar o mundo ao nosso redor. Esses novos dispositivos têm
uma qualidade visual muito importante e isso faz toda a diferença, porque você
se envolve como se fosse de fato real”. Ele ainda completa que a relação entre
visão e o modo de uso, por meio de gestos com as mãos, aproxima ainda mais os
usuários do mundo real.
Sociedade
cibernética
A evolução dessa tecnologia pode proporcionar avanços muito
importantes para a área de educação, saúde, militar, entre outras; por exemplo,
a realidade aumentada pode auxiliar em procedimentos cirúrgicos que são mais
complicados, no tratamento de doenças psiquiátricas ou em exames. “Em uma
análise clínica, há a ideia do raio X, do médico poder chegar a um paciente
usando um óculos desse e obtendo imagens. Essas imagens são superpostas àquilo
que está sendo observado na realidade, dando a impressão de que você está
enxergando realmente através do corpo”, analisa o docente.
O doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP, Marcus Repa, discorre: “É algo bem interessante do
ponto de vista de imersão, por exemplo, se aproximar e entrar no filme ou em
uma peça de teatro. Ter informações em tempo real caminhando pela cidade, olhar
para um prédio e saber quando ele foi construído, ter toda uma cadeia
bibliográfica e fontes”. Ele também ressalta a importância que pode ter no
compartilhamento de informações em escolas.
Contudo, ele aponta para o fato de que os dispositivos atuais
são caros e, dessa maneira, se tornam uma tecnologia concentrada na mão de
poucas pessoas, o que dificulta seu acesso para populações mais vulneráveis.
Assim, esse pequeno grupo privilegiado tem capacidade de controlar narrativas e
discursos sociais, uma vez que terá o conhecimento da linguagem que está sendo
construída e pode usar isso para benefício próprio.
Homem x
máquina
Segundo Netto, esses dispositivos podem deixar os indivíduos
dependentes, de forma que eles se tornem escravos da tecnologia, querendo
usá-las a todo momento — assim como já acontece com os celulares ou videogames.
Ele afirma que, na medida em que os equipamentos são atraentes ao público, eles
criam um afastamento do convívio social, inclusive do ambiente doméstico: “Há
uma dependência muito grande, na qual a pessoa fica presa ao dispositivo para
fazer qualquer coisa. Todo mundo fica ‘plugado’ nos dispositivos”.
No entanto, o professor ainda apresenta: “Por outro lado, ele
aproxima as pessoas, porque permite, talvez de uma forma mais agradável, um
convívio naquelas relações que são realmente distantes. Você pode estar
conversando com uma pessoa longe e ter a sensação, pelo menos visual, de que
ela está próxima de você”. Assim, ele disserta que isso pode ser convidativo
para que os indivíduos se interessem por essa tecnologia, a fim de possuir
relacionamentos distantes com maior facilidade e frequência.
Para o docente, a realidade virtual apresenta duas linhas:
uma individual e outra coletiva — em que várias pessoas presenciam a mesma
experiência e se encontram no mesmo ambiente cibernético, mas cada uma usando
seus próprios óculos de realidade virtual.
Sob outro ponto de vista, Leonardo Goldberg, pesquisador do
Instituto de Psicologia (IP) da USP, aborda uma visão ambivalente da realidade
virtual, visto que, quando o indivíduo está imerso na tecnologia, especialmente
nas redes sociais, ele está se relacionando com diferentes pessoas de
diferentes lugares baseado em seu algoritmo pessoal, ou seja, seus gostos e
afinidades individuais.
Diante desse cenário, bolhas sociais extremamente imóveis são
construídas, o que pode contribuir para o surgimento de problemas, desde
familiares até político-sociais, com pessoas de grupos diferentes. Ademais,
esses dispositivos interferem diretamente no encontro casual entre os
indivíduos: “Eu marco com alguns colegas para sair e isso inclui uma dimensão
da casa. Mas, se eu marco para jogar um certo jogo com eles, ou alguma dimensão
bastante protegida pelas telas, isso praticamente exclui a dimensão do
indeterminado”. O especialista afirma que isso empobrece a qualidade das
relações, transformando-as em um ritual repetitivo e monótono.
Potencial
tecnológico
“A realidade virtual tem alguns tripés: a ideia de imersão,
você não apenas ver a imagem, mas ter a sensação de que aquilo que está sendo
apresentado é muito próximo do real; a questão da interação, de você poder se
relacionar com aquilo que está sendo visto e manipular os objetos; e a própria
simulação que está por trás e que permite a realização dessas coisas”, explica
Netto. Ele ainda complementa que as tecnologias estão proporcionando situações
cada vez melhores, a partir de seu desenvolvimento.
Goldberg aponta que existe uma descontinuidade na história,
desde a invenção do computador portátil e da proliferação do mundo digital, e
que o estágio avançado da realidade virtual pode não ser perceptível. Isto é,
não seria possível distinguir o que é a dimensão digital e o que é a realidade
e, nesse sentido, em meados dos anos 1990, foi inventado o termo “computação
umbíqua”.
“É aquela noção da teologia que vai dizer que Deus está em
todos os lugares e ao mesmo tempo. Eu acho que a gente vive essa dimensão na
atualidade, com os dispositivos tecnológicos, como os relógios, óculos e fones
de ouvido, ou seja, tudo aquilo que é incluído enquanto vestimenta na nossa
rotina”, comenta.
Dessa forma, o psicólogo afirma que não consegue imaginar um
limite para a realidade virtual, caso ela seja considerada uma espécie de
prótese das incapacidades e limitações humanas, uma vez que sempre são
inventadas novas tecnologias que aumentam essa margem de crescimento. “Talvez o
limite seja muito mais terreno do que a gente tem impressão, quer dizer, talvez
seja replicar o desejo do sujeito, ou seja, toda essa dimensão mais mundana”,
finaliza.
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