A aprovação
da reforma do ensino médio pela Comissão da Educação do Senado representa mais
um passo para mudanças bastante significativas não apenas na rotina de
profissionais da educação e de alunos, mas também para as famílias desses
estudantes e para as comunidades. Para que seja de fato implementado e garanta
a qualidade e equidade na educação, será necessário o empenho e articulação dos
entes federados, assim como da comunidade escolar e de universidades, visando a
formação de professores para o novo currículo.
Como o texto
aprovado do PL 5.230/23 na comissão é um substitutivo, ele terá de retornar à
Câmara dos Deputados. O texto aprovado prevê a ampliação da carga horária
mínima total destinada à formação geral básica (FGB), das atuais 1,8 mil horas
para 2,4 mil. A carga horária mínima anual do ensino médio passa de 800 para 1
mil horas distribuídas em 200 dias letivos.
Há a
possibilidade de essa carga ser ampliada progressivamente para 1,4 mil horas,
desde que levando em conta prazos e metas estabelecidos no Plano Nacional de
Educação (PNE), respeitando uma distribuição que seja de 70% para formação
geral básica e 30% para os itinerários formativos – disciplinas, projetos,
oficinas e núcleos de estudo a serem escolhidos pelos estudantes nos três anos
da etapa final da educação básica.
Segundo o
substitutivo aprovado, da relatora do PL no Senado, Dorinha Seabra (União-TO),
a partir de 2029, as cargas horárias totais de cursos de ensino médio com
ênfase em formação técnica e profissional serão ampliadas, de 3 mil horas para
3,2 mil; 3,4 mil; e 3,6 mil quando se ofertarem, respectivamente, cursos
técnicos com carga específica de 800 horas, 1 mil horas e 1,2 mil horas.
Língua
espanhola
Entre os
destaques apresentados pela parlamentar no relatório figura a inclusão da
língua espanhola como componente curricular obrigatório, além do inglês. Outros
idiomas poderão ser ofertados em localidades com influências de países cujas
línguas oficiais sejam outras, de acordo com a comunidade escolar (professores,
técnicos administrativos, estudantes e pais ou responsáveis).
A ampliação
da carga horária e a inclusão da língua espanhola entre as disciplinas a serem
ministradas são pontos positivos da reforma, segundo a professora da Faculdade
de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos. Ela
chama atenção para alguns problemas que podem decorrer da forma como serão
implementadas.
“O texto
aprovado pela comissão do Senado apresenta alguns avanços, ainda que
insuficientes, na comparação com o texto enviado pela Câmara”, disse a
educadora à Agência Brasil. “Trazer o espanhol de volta é algo positivo, se
levarmos em consideração nossa identidade continental. Mas é preciso
estabelecermos uma divisão clara das cargas horárias, uma vez que horas
dedicadas a espanhol são horas a menos para outros conteúdos”, disse ela ao
destacar ser necessário, também, que haja clareza, no novo ensino médio, com
relação não apenas à carga horária de cada disciplina, mas também aos conteúdos
que serão apresentados.
Segundo a
educadora, o substitutivo manteve brechas especialmente relativas à educação
profissional, uma vez que não ficou claro quais seriam as disciplinas que vão
compor tais áreas. “É preciso dizer as áreas do conhecimento e, dentro delas,
definir disciplinas e carga horária. A nova legislação precisa apresentar e
detalhar isso; pegar as áreas de conhecimento e dizer o que vai compor em
termos de disciplinas".
Diretor de
Políticas Públicas da ONG Todos Pela Educação, Gabriel Corrêa diz que a
obrigatoriedade da língua espanhola no ensino médio será provavelmente um ponto
de discordância, quando a matéria retornar à Câmara.
“É possível
que a Câmara não acate todas mudanças feitas pela senadora Dorinha no texto.
Antevejo discordância de alguns com relação à obrigatoriedade do espanhol no
ensino médio. O problema, talvez, seja colocá-lo na parte comum, como mais uma
disciplina obrigatória, porque implicaria na diminuição da carga horária de
outras disciplinas importantes”, disse.
A solução,
segundo ele, seria a de colocar o espanhol como disciplina opcional, em vez de
obrigatória. “Se as escolas já funcionassem em tempo integral, não haveria esse
problema, porque a carga horária seria maior”, complementou ao lembrar que essa
obrigatoriedade foi publicamente criticada pelo Conselho Nacional de
Secretários de Educação – o que certamente será usado como argumento pelos
contrários.
Itinerários
formativos
Criados com
o objetivo de aprofundar áreas de conhecimento ou de formação técnica
profissional – levando em conta a importância desses conteúdos para o contexto
local e as possibilidades do sistema de ensino –, os itinerários formativos
terão carga horária mínima de 800 horas nos três anos de ensino médio.
Na avaliação
de Catarina de Almeida, da UnB, o aumento da carga horária do técnico
profissionalizante acabaria por resultar na diminuição da formação básica, o
que, segundo ela, não seria bom.
“Levando em
consideração o atual quadro de professores e a infraestrutura limitada das
escolas, o correto seria não fazer essa divisão [entre áreas de conhecimento e
técnico profissionalizante], e sim focar exclusivamente em uma formação básica,
comum a todos. Isso, na verdade, significa os dois tipos para todos. Ao separar
o processo, teremos estudantes com menos informação do básico”, argumentou.
Se for para
implementar com essa divisão, que seja, na avaliação dela, aumentando a carga
horária total. Nesse caso, ela sugere que se postergue aimplementação das novas
regras. “A pressa pode atrapalhar a perfeição. Se o Brasil está atrasado nessa
reformulação, ficará ainda mais com a necessidade de, depois, ter de fazer mais
uma reforma. Isso prejudicaria mais gerações. O melhor é centrar esforços em
uma reforma robusta que possa ficar por muito tempo”.
Com relação
aos itinerários formativos, a grande preocupação manifestada por parlamentares
durante a tramitação do texto foi a de resultarem em conteúdos e atividades de
pouca relevância para a formação do estudante. Foi inclusive citado o caso de
uma aula dedicada a ensinar estudantes a prepararem brigadeiro gourmet.
A ideia
proposta prevê que os itinerários têm de estar articulados com as quatro áreas
de conhecimento previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): linguagens
e suas tecnologias, integrada pela língua portuguesa e suas literaturas, língua
inglesa, artes e educação física; matemática e suas tecnologias; ciências da
natureza e suas tecnologias, integrada pela biologia, física e química; e
ciências humanas e sociais aplicadas, integrada pela filosofia, geografia,
história e sociologia.
As
diretrizes nacionais que aprofundarão cada uma das áreas do conhecimento
ficarão a cargo do Ministério da Educação (MEC), em parceria com os sistemas
estaduais e distrital de ensino.
Tempo
integral
O projeto em
tramitação no Senado aponta para a importância do tempo integral, e isso
certamente constará na lei, segundo Gabriel Corrêa, da ONG Todos pela Educação.
Enquanto isso não acontece, o Senado propôs a ampliação da carga diária atual,
de 5 horas, no caso dos estudantes que optarem por curso técnico. Já a Câmara
defende cargas horárias iguais para os dois grupos – técnico profissionalizante
e áreas de conhecimento.
“Há alguns
problemas com relação ao tempo integral. Um deles é que as redes [de ensino]
das secretarias de educação terão de ofertar estrutura para alunos ficarem mais
tempo na escola, o que resulta em mais trabalho, recursos e contratações de
professores. Outro ponto está relacionado ao risco de os estudantes optarem por
uma frente, apenas pelo fato de ficarem menos tempo em sala de aula. Em outras
palavras, desestimularia a escolha pelos cursos técnicos, caso a carga horária
diária deles seja maior”, argumentou o diretor.
A ONG Todos
pela Educação defende que não haja essa distinção entre as duas frentes, até
porque mais carga atrapalha a oferta do poder público para a expansão da rede.
“O ideal é que todos tenham a mesma carga horária, independentemente do caminho
a ser escolhido. Com isso, a escolha é em função da vocação e dos interesses, e
não da preguiça de fazer menos aulas. Por fim, isso pode confundir os
estudantes, levando-os a acreditar que uma maior carga horária indicaria maior
relevância”.
Notório
saber
Um outro
ponto polêmico do texto substitutivo aprovado na comissão do Senado é o que
trata da possibilidade de algumas aulas serem ministradas por pessoas sem
diploma de licenciatura específico para a disciplina, mas que tenham notório
saber e experiência comprovada no campo da formação técnica e profissional.
Algo similar já ocorre, por exemplo, quando engenheiros dão aula de matemática.
Segundo a
relatora Dorinha Seabra, a atuação desses profissionais de notório saber será
“em caráter excepcional, mediante justificativa do sistema de ensino e
regulamentação do Conselho Nacional de Educação (CNE)."
Essa
possibilidade preocupa a educadora Catarina de Almeida Santos, da UnB. Segundo
ela, esse tipo de situação implica risco de, ao autorizar aulas ministradas por
pessoas de notório saber, a nova legislação coloca à frente das salas de aula
pessoas leigas, em vez de profissionais habilitados da área. “A meu ver,
notório saber não tem relação com saber prático”.
Essa
possibilidade foi também criticada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Educação (CNTE). “Um ponto considerado negativo foi a permanência do notório
saber, embora o texto aponte para a normatização nacional e excepcional da
contratação desses profissionais para atuarem no itinerário da formação
técnico-profissional”, ponderou a entidade.
Esforço
conjunto
A relatora
Dorinha Seabra disse à Agência Brasil que, para ser implementada de forma
adequada, a nova proposta vai requerer esforço do estado e do governo federal,
para melhorar a estrutura das escolas. Em especial, as estruturas de
laboratórios e bibliotecas.
“Será
necessário um aprofundamento em relação às disciplinas básicas. Quando se trata
da educação profissional, requer uma estrutura ainda maior de investimento em
laboratórios e livros; em atividades extras. Temos um grande desafio, a exemplo
dos profissionais e de funcionamento das escolas”, disse.
Dorinha
acrescentou que o aumento de carga horária vai requerer mais dedicação também
de alunos e professores. “O tempo integral fica no foco de todo conjunto,
[passando por] ampliação da carga horária e permanência na escola”.
Ainda
segundo a senadora, o olhar do novo do ensino médio tem que estar cada dia mais
inserido no seu espaço; na sua localidade. “Requer a participação da comunidade
nesses espaços coletivos de formação e leituras em relação ao meio em que está
inserido, bem como aos espaços no mundo do trabalho.”
A ONG Todos
pela Educação alerta que “sem o apoio do governo federal ao estado, e dos
estados às escolas, o abismo entre escolas públicas e privadas permanecerá
mesmo com o país tendo sua legislação melhorada.”
A aprovação
pelo Legislativo, segundo Corrêa, é apenas um primeiro passo para novos
desafios. “Na sequência teremos outros desafios, até que consigamos, de forma
gradual, fazer as mudanças que melhorarão o ensino médio do país. Será uma fase
complexa e não rápida, tomando pelo menos os anos de 2025 e 2026”, afirmou.
Segundo ele,
os desafios para a implementação das novas regras passam pela preparação de
infraestruturas, profissionais, materiais e pelas avaliações que são
necessárias para identificar o que pode ser melhorado.
“Além disso,
será necessário estabelecer uma nova comunicação [das autoridades] com
estudantes e famílias sobre as mudanças que virão. Apoiar os estudantes
inclusive para que eles apoiem a escola. Não adianta o poder público se
preparar e as comunidades não se apropriarem desse modelo”, complementou.
Além de
campanhas midiáticas, será necessária muita atuação no ambiente escolar, no
sentido de preparar professores e diretores. “Serão momentos de debates sobre
projetos de vida e opções disponibilizadas pelo ensino médio. Não é apenas o
governo chegar e expor suas intenções. Será necessário ouvir, dialogar e
envolver o jovem nesse processo de escolha. Não será algo fácil. Por isso
precisaremos de uma coordenação muito boa entre MEC e secretarias
estaduais/distrital de educação”.
Aulas
noturnas
Outra
sugestão apresentada no relatório da parlamentar é a obrigatoriedade de os
estados manterem pelo menos uma escola com ensino médio regular noturno em cada
município, caso haja demanda comprovada.
O relatório
prevê, ainda, formação continuada de professores, de forma a garantir que eles
estejam preparados para as novas diretrizes e metodologias, “com foco em
orientações didáticas e reflexões metodológicas, assegurando o sucesso das
transformações propostas para o ensino médio.”
Ministro
O ministro
da Educação, Camilo Santana, comemorou pelas redes sociais a aprovação do
substitutivo na comissão do Senado. Em tom de agradecimento aos parlamentares,
ele destacou, entre os avanços, a manutenção das 2,4 mil horas, conforme
proposto pelo governo federal, para a formação geral básica e fortalecimento da
formação técnica de nível médio.
Segundo ele, esta foi uma vitória para a educação e para a juventude do Brasil. "Prevalece o interesse maior, que é comum aos que trabalham por um país de mais oportunidades: a construção de um ensino médio capaz de contribuir para tornar a escola pública mais atrativa, gratuita e de qualidade para todas e todos”, disse.
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