Cafeteria em São Paulo é comandada por pessoas com síndrome de Down - Dia voltado para essa condição é celebrado mundialmente nesta terça
Agência Brasil |
O sonho de Jéssica Pereira da Silva, de 31 anos, era abrir um
restaurante. A ideia, no entanto, se consolidou com o Bellatucci Café,
localizado em Pinheiros, na capital paulista. Dessa forma, ela se tornou a
primeira empreendedora com síndrome de Down a se formalizar no Brasil. Nesta
terça-feira (21) é celebrado o Dia Mundial da Síndrome de Down. A data é
reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2012 e faz
referência aos três cromossomos no par 21, que caracterizam a condição
genética.
“Meu sonho era abrir um restaurante, mas minha irmã e minha
mãe disseram que restaurante era muito difícil e resolvemos abrir um café. O
café mudou minha vida. Ficava muito em casa, assistia muita televisão. Agora
chego em casa 7h da noite, trabalho de segunda a sábado”, contou Jéssica.
O gosto por cozinhar veio ao observar a própria mãe e se
tornou profissão com o curso de Técnico em Gastronomia no Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (Senac). Já formada, Jéssica teve a certeza de que
queria ter um empreendimento na área de alimentação. Nas redes sociais, Jéssica
conta sua rotina no café.
“Gostava de ver a minha mãe mexendo com as panelas, as facas
e comecei a ajudar a arrumar a mesa, fazer suco, sobremesa, salada e aí
apaixonei”, disse. Na cafeteria, Jéssica serve doces, tortas e cafés. “Faço
bolo de pote, brigadeiro, pão de mel, crepe. Cozinhamos todos os dias, vendemos
tudo fresco e trabalhamos juntos, minha família toda me ajuda com o café”.
No local, trabalham outras pessoas com síndrome de Down,
inclusive Philippe Tavares, de 31 anos, o barista. “Ele era meu amigo e é
barista aqui. E agora, meu namorado”, revelou Jéssica.
O jovem fez curso de barista e de garçom. “Eu amo estar aqui.
Sou barista e faço cafés, cappuccino, café mocha. Sou um barista show. Conheci
a Jéssica na Apae, aos 6 anos. Agora, ela é minha namorada”, contou orgulhoso.
Confiança
A mãe da Jéssica, Ivânia Della Bella da Silva, é uma das
facilitadoras do empreendimento e está diariamente com os trabalhadores do
café. Ela faz o treinamento e os acompanha, além de driblar os contratempos e a
desconfiança dos clientes.
“Os obstáculos que a gente encontra, como passar para as
pessoas a confiança que eles devem ter em contratar o serviço é árduo. É um
trabalho de persistência, mas verdadeiro”.
Além de servir o café no local, a cafeteria também realiza
eventos empresarias, oferecendo coffee breaks e coquetéis.
“Desde pequena, a Jéssica mostrou sinais de que queria
trabalhar com comidas. Ela fez curso de técnica em gastronomia e começou a
gostar muito, a procurar receitas, então quis abrir um restaurante. Sugerimos
abrir um café e ela ficou super feliz”, contou.
A irmã de Jéssica, Priscila, junto do marido, Douglas
Batetucci, investiram no espaço. Com a pandemia, o Café mudou de lugar. Agora,
funciona anexo ao Restaurante Como Assim?!, cujo o dono, um investidor social,
apoiou o empreendimento de impacto social da Jéssica. “A família toda ajuda e a
gente não quer parar, queremos ver o resultado dela que está sendo muito
bacana”.
Ivânia aconselha pais e mães a incentivar e a estimular
filhos com síndrome de Down. Sua expectativa é que, assim, a sociedade se torne
mais acolhedora e aprenda a conviver melhor com pessoas diferentes.
“Os nossos filhos jovens estão abrindo caminho para esses
bebês [pessoas com Down] com um leque de possibilidades. Desejo que as mães
estimulem seus filhos e deixem eles serem o que eles quiserem porque eles
podem, basta você confiar. Se ele gosta de uma coisa, trabalhe em cima disso
que ele vai dar certo e acreditar. Tenho a experiência viva e espero que um dia
a sociedade deixe de falar inclusão e fale apenas em convivência, que a gente
saiba conviver com os diferentes”, argumentou Ivânia.
Barreiras
O empreendimento da Jéssica é um exemplo da capacidade das
pessoas com síndrome de Down. No entanto, a inserção no mercado de trabalho
ainda enfrenta dificuldades, explicou a psicóloga Paula Cardoso Tedeschi, que
atua na Fundação Síndrome de Down, com sede em Campinas (SP).
“As barreiras são alguns estigmas e preconceitos, uma
superinfantilização das pessoas. Então há barreiras físicas, atitudinais e
comunicacionais que dificultam a inclusão. São esses preconceitos de imaginar
que [a pessoa com Down] não pode fazer e que não tem capacidade”, disse.
Para a psicóloga, mudanças nas posturas dos colegas e dos
líderes de organizações podem melhorar a inclusão das pessoas com Down no
mercado de trabalho.
“É preciso mudar esse olhar muito infantilizado, de imaginar
que o colega de trabalho é uma criança, de não visualizá-lo como uma pessoa
adulta que tem os seus direitos e os seus deveres. É uma pessoa que está lá
para fazer um tipo de serviço e a postura do colega ou do líder deve ser de
apoiá-lo como a todos os funcionários. Há questões em que são necessárias de
adaptações, mas essas questões não impedem que essa pessoa seja tratada como um
trabalhador, que tem horários, deveres e direitos, assim como os demais”,
afirmou.
A Fundação Síndrome de Down oferece, desde 1999, o Serviço de
Formação e Inclusão no Mercado de Trabalho.
https://www.fsdown.org.br/o-que-fazemos/formacao-e-inclusao-no-mercado-de-trabalho/
O curso é composto por quatro programas: Iniciação ao Trabalho, Vivência
Prática Profissional, Contratação CLT e Sócio Laboral.
“Esse serviço é oferecido a população com síndrome de Down e
deficiência intelectual, através do Serviço Único de Saúde (SUS). As famílias
podem procurar os centros de saúde, que encaminham para a fundação”, explica a
psicóloga.
Legislação
A contratação desse público está prevista na Lei de Cotas
para Pessoas com Deficiência (8.213/91). A legislação determina que a empresa
com 100 e 200 empregados está obrigada a preencher 2% dos seus cargos com
pessoas com deficiência. Empresas com 201 a 500, são 3%; de 501 a 1000, são 4%
e de 1001 em diante são 5%. A multa para o descumprimento pode chegar a mais de
R$ 200 mil.
Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência veda a restrição ao
trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua
condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão,
exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e
reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.
Na opinião da psicóloga, é necessário que a sociedade e as
empresas sejam mais inclusivas para que de fato as pessoas com Down tenham
oportunidades.
“Desde a questão arquitetônica para uma adaptação e locomoção
até as questões das informações para as mudanças nas barreiras atitudinais. As
empresas também precisam estar mais dispostas a conhecer, a ter vivências, para
que tenhamos mais possibilidades de inclusão, inclusive com planos de carreira
nas empresas. É preciso uma série de mudanças para que um trabalho de fato
inclusivo”, afirmou Paula.
Inclusão
Na visão da fundadora da ONG Nosso Olhar, Thaissa Alvarenga,
a socialização e inclusão desses indivíduos deve ser trabalhada desde o berço
familiar até a vida adulta. E quem convive também deve aprender mais sobre as
pessoas com Down.
“No Brasil, temos a Lei de Cotas. Porém, para várias pessoas,
essa realidade ainda é distante. Pessoas sem deficiência também devem ter a
disposição de aprenderem para que a diversidade seja colocada em prática, assim
a inclusão pode ser de fato trabalhada em todos os ambientes. Devemos promover
e orientar. Para inclusão acontecer, devemos mobilizar o setor público e
privado, unido com o terceiro setor”, avaliou. Thaissa atua pela garantia da
capacitação, inserção no mercado de trabalho, independência financeira e
autonomia das pessoas com deficiência e responsável pelo portal de conteúdos
Chico e Suas Marias e Espaço Rede T21.
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