Denúncias de tortura e maus-tratos triplicaram no estado de São Paulo - Defensoria Pública estadual relatou inércia do governo a comitê da ONU
O número de denúncias de violação de direitos, como torturas, castigos, maus-tratos e ameaças, sofridos por pessoas encarceradas triplicou em 2023 no estado de São Paulo. Os relatos feitos à Defensoria Pública do estado neste ano (211 casos) são 3,45 vezes maiores do que as denúncias recebidas em todo o ano passado (61).
O coordenador do Núcleo
Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Diego
Polachini, avalia que “o sistema como um todo é uma tortura”. Segundo ele, a
violação de direitos dentro do cárcere não se restringe a casos pontuais, ela é
sistemática, e a única solução passa pelo desencarceramento do máximo de
pessoas possível.
“A vivência na cadeia já é
torturante. A ideia de prender uma pessoa numa jaula evidentemente configuraria
tortura em qualquer aspecto, mas como é uma pessoa que está cumprindo pena,
isso não é considerado”, disse o defensor em entrevista à Agência Brasil. No
momento, há apenas hipóteses para o aumento nas denúncias, conforme apontou
Polachini: um aumento na intensidade das torturas e maior acesso das famílias
aos meios de denúncias.
Em março deste ano, a Defensoria
Pública de SP enviou para o Comitê da Organização das Nações Unidas (ONU)
contra a Tortura uma análise do cumprimento pelo Brasil das regras constantes
na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes, denunciando práticas violentas e inércia do estado diante dos
casos.
No documento, o órgão aponta o prejuízo do veto pelo governo do estado, em 2019, ao projeto de lei que estabelecia um Mecanismo e um Comitê de Prevenção e Combate à Tortura no estado; a necessidade de investigação rápida e imparcial em casos de violência institucional; e denuncia ainda graves episódios de tortura praticados por grupos táticos prisionais.
Polachini destaca casos ocorridos
durante a invasão do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), que estão no documento.
O grupo tático prisional, subordinado à Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP), deveria ser uma intervenção pontual para reprimir
desordens nas unidades. No entanto, a defensoria avalia que o grupo se tornou
presença habitual e ostensiva nos presídios, sendo protagonista de episódios
corriqueiros de violência e tortura contra pessoas presas.
“Em ações regulares, normalmente
eles invadem uma cadeia, quando tem alguma alegação de distúrbio ou algum preso
que não quer voltar para cela, com bomba de borracha, cachorros, os presos são
obrigados a ficar pelados, sendo ameaçado muitas vezes pelos cachorros muito
próximos. Então é uma tortura psicológica muito severa que eles fazem”, contou
o defensor.
Objetos ilícitos nas celas
Um dos episódios relatados à
Organização das Nações Unidas (ONU) foi operação realizada em 2015, na
Penitenciária de Presidente Prudente, para apreender possíveis objetos ilícitos
nas celas. Na ocasião, cerca de 240 detidos sofreram violência física e psicológica
por duas horas e meia. De acordo com o documento, mesmo sem encontrar
resistência, os agentes do GIR xingaram e agrediram fisicamente os presos com
socos, chutes e golpes de cassetete, além de disparos de balas de borracha em
ambiente fechado.
“Vários presos sofreram lesões
corporais, principalmente nas costas e nádegas, demonstrando que estavam em
posição indefesa. Como se não bastasse, entre os feridos estavam um idoso e um
cadeirante, o que demonstra o nível de brutalidade dos ataques”, relatou a
Defensoria na análise.
O documento aponta que, além da
violência institucional, outras violações sistemáticas que configuram atos de
tortura no sistema prisional paulista são “a superlotação carcerária, falta de
ventilação e iluminação adequadas, equipes mínimas de saúde insuficientes,
falta de medicamentos, má qualidade da estrutura física dos prédios,
racionamento de água, falta de água potável, falta de chuveiros quentes,
limitação e ausência de banhos de sol, falta de itens de higiene pessoal e vestuário
e falta de alimentação adequada e em quantidade suficiente”.
Fome
Há reclamações recorrentes sobre a
quantidade da alimentação no sistema penitenciário paulista. “O medo da fome é
constante no sistema carcerário, os presos vivem sob essa ameaça e passam fome
constantemente aqui no estado de São Paulo. Eles precisam complementar a
alimentação através do apoio familiar. Se a família não manda comida, eles
reclamam que passam muita fome, que a comida não é suficiente”, revelou
Polachini à Agência Brasil.
O defensor citou ainda situações
conhecidas como “pena de fome”, em que irregularidades cometidas pelas pessoas
encarceradas são punidas com racionamento de comida. “Eles ficam sem comer por
um período ou é diminuída a comida para eles. Isso me parece uma evidente
tortura”, comentou. Além disso, segundo ele, cotidianamente boa parte das
unidades racionam a água, os presos muitas vezes são privados de tomar banho e
passam sede constantemente.
Em relação as violências
psicológicas, há denúncias de ameaças por parte dos funcionários das unidades
prisionais. “Quando vai chegando perto da saída dele [para o semi aberto], os
funcionários começam a ameaçar com [aplicação de] faltas graves, então ele vive
uma constante tortura psicológica com medo de falar qualquer coisa, fazer
qualquer coisa, e ter o direito dele a progressão de regime impedido.”
Segundo ele, há também uma tortura
que é feita durante as revistas. “Tem penitenciárias específicas em que os
presos, para saírem para trabalhar, por exemplo, ainda que eles estejam no
regime semi aberto, eles têm que tirar a roupa todo dia”. O defensor
acrescentou que, em uma das denúncias recebidas pela Defensoria, uma pessoa com
deficiência era obrigada a tirar a roupa e sentar no chão em todas as saídas da
cela, o que foi definido como “torturante” pelo denunciante.
Condições ideais
O defensor público Polachini
ressalta que a única limitação imposta pela Justiça às pessoas encarceradas é
privação de liberdade. Diante disso, os demais direitos, garantidos a qualquer
cidadão, deveriam ser garantidos também dentro do cárcere. Segundo ele, esse é
o entendimento das cortes superiores e dos tribunais internacionais.
Entre as medidas consideradas
básicas, estão o afastamento de guardas e agentes penitenciários envolvidos em casos
de tortura, acesso a médico, melhoria na oferta de alimentação, tanto em
quantidade como em qualidade, proibição do racionamento de água.
“Todos os direitos que as pessoas
têm na rua os presos deveriam ter, então direito a trabalho, a estudo, à dignidade
- que abarca uma quantidade maior de direitos. Os presos têm exatamente todos
os direitos de um cidadão [em liberdade]: não pode ser torturado, não pode ser
agredido, não pode ser xingado, não pode ter racionamento de produtos
essenciais, como água a energia elétrica”, disse.
Para ele, a melhoria das condições
estruturais do sistema penitenciário passa por medidas de desencarceramento. “A
única solução que eu vejo como melhoria disso é o desencarceramento. O sistema
carcerário em si é feito para ser uma forma de tortura, então para reduzir a
tortura só tirando pessoas lá de dentro. Então o desencarceramento da maior
quantidade de pessoas possíveis para evitar que mais pessoas sofram com isso.”
Existem instrumentos atualmente que visam à redução da população carcerária, mas que não são colocadas em prática pelo judiciário. “A nossa Constituição trata a prisão como uma exceção. 40% dos presos são presos preventivos, são presos que não foram condenados ainda. A constituição e Código do Processo Penal, e até as recomendações do próprio CNJ e do STF, falam que a prisão antes da sentença é uma exceção”, disse.
“Muitas vezes isso infelizmente não
é aplicado, principalmente, aqui no estado de São Paulo, que tem um alto índice
de conversão das prisões em flagrante em prisão preventiva. Medidas
alternativas à prisão preventiva poderiam ser mais aplicadas, já são
completamente previstas”, acrescentou.
Ele citou o habeas corpus coletivo,
concedido pelo STF em 2018, que determinou a substituição da prisão preventiva
por domiciliar para gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou
de pessoas com deficiência, em todo o território nacional. No entanto, a medida
ainda apresenta dificuldade de aplicação.
“Os juízes aqui em São Paulo acabam
sendo muito reticentes na aplicação disso, muitas vezes falando que só tem duas
opções: a mãe cometeu o crime com a criança ou sem a criança. Se ela comete o
crime com a criança, [consideram que] ela está sendo uma mãe que deixou a
criança em risco. Se ela comete um crime sem a criança, [consideram que] ela já
tinha abandonado filho, então não teria porque ela ter direito a prisão domiciliar”,
lamentou o defensor.
Entre as recomendações do documento
enviado à ONU, a Defensoria pede que país adote medidas que garantam o
afastamento cautelar de servidores públicos suspeitos de envolvimento em crimes
de tortura e maus tratos e que haja investigação célere, imparcial, eficaz e
dentro de um prazo razoável dos casos.
A coordenadora auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Surraily Youssef, avalia que a maior investigação que se faz em casos de violência cometida por agentes do estado não é da conduta do policial, por exemplo, mas da conduta da pessoa que foi presa.
“O que a gente percebe é que há
ainda uma desvalorização da narrativa sobre violência das pessoas que já
tiveram em algum momento algum contato com a Justiça Criminal e é essa cultura
que nós precisamos reverter e combater para que aquela narrativa seja central
para dar início aos mecanismos de apuração”, disse.
Ela acrescenta que os marcos
institucionais, tanto nacionais como internacionais, indicam que a tortura é
uma prática que sempre tem que ser vedada e todos os órgãos que tem contato com
denúncias de tortura, principalmente o judiciário e o Ministério Público, devem
dar encaminhamento a uma investigação de pronto.
Youssef avalia que é preciso pensar
mecanismos de fiscalização dos ambientes de privação de liberdade, a fim de
ampliar as possibilidades de acesso ao cárcere para essa fiscalização, como por
exemplo o Mecanismo e o Comitê de Combate à Tortura no âmbito estadual, que são
previstos no protocolo adicional da Convenção Contra a Tortura da ONU. Os
instrumentos estavam previstos em projeto de lei, aprovado na Assembleia
Legislativa de São Paulo, mas foi vetado pelo governo.
“O [João] Doria vetou em 2019 o projeto, que instituía o Mecanismo e o Comitê Estadual, que poderiam acessar os espaços de privação de liberdade. E não só o cárcere, há denúncias de violência em comunidade terapêuticas, em hospitais psiquiátricos, em casa de repouso, então é importante a gente ampliar, e a existência do mecanismo e do comitê permitiria a realização de inspeções nesse espaço prisionais”, disse.
Ela acrescenta que, quando existe
uma abertura para fiscalização desses espaços de privação de liberdade, é
possível não só registrar as práticas de tortura, mas pensar recomendações para
que elas sejam superadas.
Outro lado
A Secretaria da Administração
Penitenciária informou que não tolera quaisquer desvios de condutas de
servidores e que, para toda denúncia de tortura ou ato correlato, o funcionário
é investigado e, caso comprovada a denúncia, é afastado e punido de acordo com
a legislação. Segundo a pasta, existem canais para recebimento de denúncias,
como a Ouvidoria e a Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário e o
sigilo do denunciante é preservado.
“Sobre alimentação, a SAP informa
que são servidas pelo menos três refeições (café, almoço e jantar) diariamente.
A alimentação é balanceada e segue um cardápio previamente estabelecido e
elaborado por nutricionistas. Não há racionamento de água nas unidades da SAP.
Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial de Saúde, que
estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água”, diz a
nota.
Para combater a superlotação
prisional, a pasta informou que, neste ano, estão previstas as entregas de três
novas unidades nos municípios de Aguaí, Riversul e Santa Cruz da Conceição, que
terão o total de 2.469 vagas. “O governo de São Paulo também incentiva a adoção
de penas alternativas pelo Poder Judiciário, além da realização de mutirões
visando dar maior agilidade aos processos. Nos últimos dez anos, o número de
vagas foi ampliado em 40,12% em todo estado”, finalizou.
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