Estudo revela mecanismos por trás das mortes por chikungunya - Gravidade está relacionada à reação exagerada do sistema imunológico à infecção pelo vírus e à diminuição de níveis de fatores de coagulação
Cientistas da Unicamp participaram de um estudo multidisciplinar e internacional que desvendou os mecanismos por trás do óbito de pacientes com febre chikungunya. Os resultados da pesquisa acabam de ser publicados no periódico científico Cell Host & Microbe e sugerem que a gravidade da doença está relacionada a uma reação exagerada do sistema imunológico à infecção pelo vírus e à diminuição dos níveis de fatores de coagulação, grupo de proteínas essenciais para a formação do coágulo sanguíneo, provocando dano hemodinâmico e quebra da barreira que protege o sistema nervoso central (SNC).
Embora a ocorrência de complicações seja uma raridade no caso
dessa doença – cerca de 30% dos casos sequer desenvolvem sintomas e a maioria
das pessoas apresenta febre e dores que somem após dez dias de manifestação –,
o Brasil está há mais de uma década enfrentando uma epidemia de febre
chikungunya. De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 2015 e 2019,
foram registradas 593 mortes causadas pela enfermidade. Apenas este ano, quase
69 mil casos foram registrados em todo o país, com 17 óbitos confirmados e
outros 66 em investigação.
De acordo com um dos autores do estudo, o professor José Luiz
Módena, que coordena o Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) do
Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, o impacto da chikungunya como agente
causador de óbito ainda era um tema pouco explorado pelos cientistas, uma vez que
a taxa de mortalidade da doença é relativamente baixa. No entanto, em um estudo
anterior realizado no Ceará – Estado mais afetado pelo vírus no Brasil –, os
pesquisadores observaram uma taxa de mortalidade acima da esperada e pacientes
com sintomas normalmente não associados à doença clássica, como meningite, encefalite
e falência cardíaca.
Como primeira hipótese, os pesquisadores pensaram se tratar
de um vírus diferente. Mas, apesar de encontrarem uma mutação na proteína
Envelope 2, que poderia favorecer a infecção, essa variedade foi observada
tanto em pacientes que faleceram quanto nos que não faleceram. Depois disso,
tiveram a ideia de verificar se era o doente quem respondia de maneira
diferente à febre chikungunya. “Segundo verificamos, essas pessoas que
evoluíram para óbito estavam em um processo hiperinflamatório, que pode induzir
coagulação e quebra da barreira endotelial. Essa é uma das coisas que a gente
viu em parte dos pacientes com covid-19. Tudo isso pode evoluir para um quadro
muito grave”, revela.
O professor explica que, ao picar, o mosquito injeta o vírus
junto com a saliva. No local da picada, o vírus vai se replicar em células
chamadas fibroblastos e células apresentadoras de antígenos, que estão
distribuídas em nosso corpo e são importantes para reconhecer corpos estranhos
e apresentá-los ao sistema imunológico. Quando essas células migram para outros
tecidos, os vírus presentes ali dentro, ao se replicarem e serem liberados,
podem atingir outros órgãos do corpo.
“A gente tem observado de um tempo para cá, no Brasil, que
esse padrão de dor crônica e inchaço articular continua aparecendo, mas que
parte dos pacientes também relatam dor neuropática. Os pacientes do estudo
apresentavam alteração hemodinâmica e demonstraram um estado de fragilidade
vascular que provavelmente favorece o acesso do vírus ao sistema nervoso
central. Então o trabalho teve o objetivo de investigar o que estava acontecendo
com eles”, relata o docente.
Descobertas
O SNC, uma estrutura formada pelo cérebro e pela medula
espinhal, tem como função o processamento de informações sensoriais, o controle
motor e o desempenho de funções cognitivas. Ele é protegido pela barreira
hematoencefálica – uma estrutura formada por células endoteliais unidas de
forma bastante estreita e que protege o ambiente interno do cérebro,
controlando quais substâncias podem passar.
O que os pesquisadores descobriram é que o vírus da
chikungunya consegue acessar o SNC por meio de dois mecanismos que atuam em
conjunto. No primeiro, ele invade esse sistema ao infectar monócitos – células
do sistema imunológico com a função de defender o organismo contra corpos
estranhos. Na presença de altos níveis de CCL-2, um tipo de proteína capaz de
mediar a inflamação, esses monócitos têm os seus movimentos estimulados e
conseguem migrar através da barreira hematoencefálica para o cérebro, como uma
espécie de “Cavalo de Tróia” que transporta o vírus.
No segundo mecanismo, o vírus altera determinadas proteínas
de junção oclusiva da barreira hematoencefálica, ou seja, proteínas
responsáveis por promover a adesão entre as células, impedindo a passagem de
substâncias no espaço entre elas. Isso ocorre por meio da diminuição da
expressão de uma dessas proteínas, a Pecam-1, responsável pela adesão das
células, e por meio do aumento da expressão da proteína ZO-1, que tem o papel
de regular a transmissão de sinal e conduzir as substâncias para as células.
Para chegar a essa conclusão, foram realizadas análises de amostras de soro e líquido cefalorraquidiano de pacientes que evoluíram para óbito e que eram suspeitos de terem tido chikungunya, amostras essas enviados ao Laboratório Central do Ceará, bem como de pacientes que não evoluíram para óbito. “Uma parte dessa punção foi enviada para o laboratório de referência e depois eles enviaram para cá o que sobrou para a gente fazer a detecção do vírus, o sequenciamento, a proteômica, que é o conjunto de proteínas naquele lugar, e a metabolômica, que são os metabólitos presentes em determinada condição, para tentar entender o que eles tinham de diferente”, relata Módena.
Embora a quantidade de amostras analisadas não tenha sido
suficiente para poder afirmar quais seriam os grupos de risco para desenvolver
casos graves de chikungunya – uma vez que o número de mortes pela doença é
significativamente pequeno –, alguns resultados levam os pesquisadores a
acreditar que pacientes cardíacos, com problema de pressão ou diabéticos podem
ser mais propensos a desenvolverem o quadro grave da doença e, portanto,
precisam ser observados com mais cuidado.
“Esse estudo vem para mostrar que a gente tem de acompanhar e
seguir de perto os desfechos de quem contrai chikungunya e fazer vigilância em
porta de UTI [unidade de tratamento intensivo] para manifestações normalmente
não associadas ao vírus, até porque essa pessoa pode ter chikungunya na fase
aguda e não ter sintomas”, alerta. “Ela pode não ter sintoma e ainda assim
evoluir para um quadro grave, que o médico vai associar com alguma doença de
base, mas que foi descompensado por causa de uma infecção anterior por
chikungunya”, finaliza.
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