Mulheres devem estar atentas para não serem usadas por partidos políticos e, posteriormente, sofrerem condenações. O rigor do TSE em relação à desistência de candidatas evidencia o descompromisso dos partidos políticos
Para o Tribunal Superior Eleitoral, não há problema de saúde,
tragédia pessoal ou vontade íntima que justifique a desistência de uma
candidata se ela não chegou a manifestar a intenção de realmente concorrer nas
eleições proporcionais.
Caso após caso, a corte vem julgando com rigor as alegações
apresentadas pelas candidatas laranjas, o que tem levado a dezenas de decisões
pela cassação de chapas completas pela ocorrência de fraude à cota de gênero.
Um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor
Jurídico, elencou 17 acórdãos sobre o tema, todos referentes às eleições
municipais de 2020, ocorridas durante a epidemia da Covid-19. Naquele ano, as
campanhas foram primordialmente virtuais.
As mulheres que são alvos dessas ações registraram suas
candidaturas como parte do mínimo de 30% para cada gênero que o artigo 10º,
parágrafo 3º, da Lei das Eleições exige, mas não fizeram campanha e receberam
poucos ou nenhum voto.
A jurisprudência do TSE indica que a chamada “desistência
tácita” da candidata precisa ser demonstrada por argumentos ou documentos, com
indícios ao menos de um início de campanha que demonstre que a intenção era
mesmo concorrer.
A corte tem reformado decisões de Tribunais Regionais
Eleitorais que ainda admitem que a desistência da candidata seja simplesmente
alegada por motivos de foro íntimo. Esses tribunais afastam a presunção de
fraude à cota de gênero.
Em contraposição, o TSE tem ressaltado que os partidos devem
manter candidaturas femininas viáveis e com pretensão de disputa nas eleições
proporcionais durante todas as fases do processo eleitoral.
As advogadas consultadas pela ConJur veem acerto nessa
jurisprudência. Para elas, o rigor do TSE ataca a principal causa do problema:
o descompromisso dos partidos políticos com as mulheres, algo que interpretam
como violência política de gênero.
Culpa dos
partidos
Roberta Laena explica que as legendas têm um modo de operação
para fraudar candidaturas femininas: cooptam mulheres apenas para cumprimento
da cota de gênero, sem que haja o real intuito de apoio a essas candidatas.
Servidora da Justiça Eleitoral do Ceará, ela é autora do
livro Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero
(2020), fruto de pesquisa para tese de doutorado que elenca as maneiras usadas
no Brasil para estabelecer candidaturas femininas fraudulentas.
Uma das classificações feitas por ela é a da “candidata
desertora”, a partir do caso de uma das entrevistadas, que até queria fazer
campanha, mas desistiu pela falta de apoio do partido, não contou à Justiça Eleitoral
e teve votação zerada.
Segundo Laena, a fraude à cota de gênero é uma ação do partido,
não das mulheres envolvidas.
“Ao invés de capacitar mulheres, de chamá-las para participar
ativamente do partido, de incentivar financiando de candidaturas femininas
reais, os partidos insistem na fraude. Então, as mulheres que desistem são, via
de regra, as fictícias.”
“Quando não são as fictícias, as que desistem são as que não
encontram amparo e incentivo do partido. Nesse caso, o motivo é machismo,
sexismo, misoginia. De todo modo, nos dois casos se denota a falta de apoio
partidário às candidaturas reais de mulheres.”
Na opinião de Georgia Nunes, a jurisprudência formada impõe
um tipo de conduta não apenas à candidata que desiste, mas ao próprio partido e
aos demais integrantes da lista, que se beneficiam do registro da mulher para preenchimento
da cota de gênero.
“A meu ver, o principal fator de desistência das candidatas
que se registram, as que realmente pretendem disputar, é o descompromisso do
partido com a sua eleição. Elas são atraídas para a agremiação com muitas
promessas que, na maioria das vezes, não se cumprem durante a campanha. Essa
desistência, sim, é preocupante.”
Problemas
de saúde
Questões de saúde são a principal alegação das candidatas que
dizem desistir das eleições. Frequentemente, esse argumento é afastado por se
tratarem de problemas que elas já conheciam quando decidiram se candidatar.
Foi o caso de uma candidata à Câmara Municipal de Traipu
(AL), que abandonou a campanha por episódios de dor lombar incapacitante. Na
ação, descobriu-se que ela sofria havia anos do problema e que nem campanha nas
redes sociais se preocupou em fazer.
Outra candidata, em Laje do Muriaé (RJ), disse à Justiça
Eleitoral que desistiu por causa de doença da enteada, que teve de ser
submetida a operação. No entanto, a cirurgia se deu mais de um mês após o
início da propaganda eleitoral, na qual ela não praticou qualquer ato.
Em Muqui (ES), uma candidata desistiu porque se submeteu a
cirurgia bariátrica. O problema é que, dois dias antes de registrar sua
candidatura, ela informou nas redes sociais que em breve faria a operação.
Mesmo ciente das consequências do procedimento, decidiu concorrer.
Situações como essas fizeram o ministro Benedito Gonçalves,
relator de um caso de Iguaba Grande (RJ), notar a existência de um paradoxo: o
da candidata que decide registrar candidatura mesmo sabendo que está doente
para, logo depois, desistir da disputa justamente pela doença.
Nesse caso, a mulher alegou que sofria de hérnia inguinal.
Isso, porém, não a impediu de posar para fotografias, em locais diversos,
apoiando pré-candidato ao mesmo cargo que ela concorreria, o que levou ao
reconhecimento da fraude.
Em Diamante (PB), uma candidata justificou sua desistência
por ter contraído Covid-19 durante o período eleitoral. No entanto, a ação tem
fotos que mostram que, na mesma época, ela fez campanha em prol da própria
sogra.
As atividades nas redes sociais também levaram ao
reconhecimento da fraude de uma candidata de Blumenau (SC) que desistiu pelo
agravamento da saúde do pai. No período, ela fez várias postagens, mas nenhuma
para divulgar a própria candidatura.
Há um caso em que a justificativa foi aceita: em Roteiro
(AL), a candidata desistiu porque o marido esteve em tratamento de câncer
durante a campanha. Para justificar a desistência, ela apresentou recibo de
consulta, de serviços médicos e exames.
Ainda assim, a votação foi por maioria de votos. Vencido, o
ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, sustentou que a doença já
existia antes da campanha e que ela teria tempo para permitir sua substituição
na lista de candidatas pelo partido.
Tragédia e
vergonha
A ocorrência de tragédias pessoais também não sensibiliza
muito o TSE. Em Macau (RN), uma candidata justificou sua desistência pelo luto
devido à morte da própria irmã, que ocorreu mais de um mês antes do início da
campanha.
O tribunal também afastou a justificativa de uma candidata de
Vila Velha (ES) que desistiu porque a filha sofreu um aborto. As dificuldades
da gravidez ocorreram antes da convenção do partido, da qual a mulher
participou. Portanto, a tragédia já tinha ocorrido quando ela decidiu
concorrer.
Também em Vila Velha, uma mulher desistiu devido à morte de
Toninho Magalhães, presidente do diretório municipal do PTB. Ela alegou que
ficou com vergonha de avisar o partido, já que o falecido se esforçou muito
para formar a chapa para as eleições.
A conclusão do TSE, nesse caso, foi de que a justificativa
era inválida porque o falecimento ocorreu antes da convenção para a escolha de
candidatos e do pedido de registro de candidatura da investigada.
A vergonha e o constrangimento foram usados como
justificativa por uma candidata de Piraí (RJ) que desistiu depois de ver
circularem vídeos nas redes sociais sobre fato criminoso vinculado à sua
imagem. A corte não aceitou porque, mesmo assim, ela fez campanha para um
candidato a prefeito.
Em Coração de Maria (BA), uma candidata desistiu porque seu
partido teve disputa interna que resultou em guerra jurídica. Relator da
matéria no TSE, o ministro Raul Araújo observou que, “embora não seja desejado,
não é incomum, ao longo do processo eleitoral, haver disputas jurídicas no
âmbito do próprio partido sobre a legitimidade desta ou daquela candidatura, o
que de forma alguma justifica a desistência tácita de candidaturas”.
Questões
práticas
O TSE também enfrentou justificativas mais práticas — e menos
nobres. Em Currais Novos (RN), uma mulher desistiu porque, no início da
campanha, teve de voltar ao trabalho presencial de professora. A fraude foi
confirmada porque ela tinha tempo para avisar o partido e ser substituída, mas
não o fez.
Em Vila Velha, uma candidata disse que desistiu da campanha
porque não tinha familiaridade com as ferramentas eletrônicas e redes sociais.
O problema é que, no mesmo período, ela concorreu e foi eleita para o cargo de
líder comunitária do bairro Pontal das Graças. Recebeu 241 votos e inclusive
usou ferramentas eletrônicas para a divulgação da candidatura.
O rigor do TSE serviu para considerar fraudulenta até mesmo o
caso da mulher de Novo Gama (GO) que participou da convenção partidária, foi a
primeira escolhida e chegou a deixar o cargo público que ocupava só para
concorrer.
No entanto, para o relator, ministro André Ramos Tavares, a
desincompatibilização de cargo público é irrelevante e a renúncia tácita não
foi demonstrada.
Incentivo
tácito
Para Roberta Laena, o rigor do TSE sobre o tema é um
incentivo às candidatas e representa um avanço na luta das mulheres na
política. “Mostra que o Poder Judiciário, atento ao uso das mulheres como
mercadoria eleitoral pelos partidos, está contribuindo para assegurar a representação
feminina no poder.”
Georgia Nunes concorda, afirmando que a jurisprudência visa a
evitar a perpetuação da prática corriqueira de violência política contra as
mulheres. Ela destaca a evolução do tratamento dado ao tema pela Justiça
Eleitoral.
“Essas decisões abriram a possibilidade de discussão judicial
da fraude à cota de gênero após as eleições e, inclusive, com a cassação de
mandatos beneficiados com a fraude. A partir disso, os partidos e candidatos
receberam a mensagem de intolerância da Justiça Eleitoral com essa burla, que
prejudica a participação feminina na política.”
“Espero que isso incentive as agremiações e seus líderes a
procurarem candidatas competitivas e, mais do que isso, permitindo que elas
concorram nas mesmas condições dos demais candidatos”, complementa ela.
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