Líderes radicais católicos e
evangélicos apelam ao discurso religioso no país que foi governado por quase 14
anos por um indígena de origem aimará, que venera a deusa Pachamama (mãe terra)
Conteúdo: ‘O GLOBO’
Com as mãos na Bíblia ,
ajoelhado, Luis Fernando Camacho, o líder da ala radical da oposição boliviana
, rezou ao entrar no palácio presidencial na noite de domingo, após a renúncia
de Evo Morales. “Não estou indo com as armas, mas com minha fé e esperança, uma
Bíblia na mão direita e sua carta de renúncia na esquerda”, dissera ele, dias
antes, na cidade de Santa Cruz, a mais rica do país. Católico fervoroso, ele
não é o único a usar a religião como bandeira para atrair jovens conservadores
na Bolívia, país que foi governado por quase 14 anos por um líder indígena de
origem aimará, que venera a deusa Pachamama (mãe terra).
A opositora Jeanine Añez,
segunda vice-presidente do Senado, que reivindicou a sucessão de Morales ante o
vazio de poder, também citou a Bíblia ao chegar ao Congresso na segunda-feira.
Por pelo menos três vezes, usou a expressão “com a bênção de Deus” para
justificar sua decisão de tentar assumir interinamente a Presidência. Nas
urnas, a penetração da religião na política foi representada nas eleições
presidenciais de 20 de outubro pela figura de Chi Hyun Chung , um pastor
evangélico radical, que conseguiu um surpreendente terceiro lugar com 8,77% dos
votos pelo Partido Democrata Cristão.
O estrategista americano
Steve Bannon disse uma vez que o crescimento da direita se daria em torno dos
valores éticos e morais que, na América Latina, são representados pela
religião. Durante a campanha, Chi chegou a dizer que os incêndios que atingiram
parte da Amazônia aconteciam porque somos um povo pecador [pela existência de
gays na Bolívia] — explica o cientista político boliviano Marcelo Arequipa.
Oração nas ruas
Para o sociólogo boliviano
Julio Córdova, especializado em temas religiosos, o crescimento do discurso
religioso é uma resposta a avanços recentes.
À medida que avança a agenda
de direitos para as mulheres e diversidade sexual, a reação conservadora
religiosa fica mais visível e com potencial de influir nas eleições do futuro —
disse ao jornal El País. — Houve uma “santa aliança” entre política partidária
e religião.
Se a campanha do pastor foi
forjada em uma aliança com as igrejas evangélicas, interessadas em traduzir seu
crescente peso religioso em influência política, Camacho é um líder católico
radical, que aproveita a religião para se promover como presidente do poderoso Comitê
Cívico de Santa Cruz.
O movimento cívico juvenil
apela ao discurso religioso. É uma novidade muito atrativa — explica Carlos
Cordero, cientista político da Universidade Mayor de San Andrés. — E é
interessante que, embora Camacho e Chi tenham um discurso semelhante, os dois
não tenham nenhuma relação partidária.
Em cada uma de suas
aparições públicas — e nas redes sociais —, Camacho incentiva a oração e
proclama sua fé, convocando manifestações e atos na praça Cristo Redentor, em
Santa Cruz. Também costuma postar imagens das Cruzadas em textos para seus
apoiadores no Facebook, onde cita trechos da Bíblia com frequência.
O ativismo de Camacho
começou aos 23 anos, como vice-presidente da organização cívica União Juvenil
Cruceñista, descrita por organismos de direitos humanos locais como uma espécie
de grupo paramilitar que realizava atos de racismo e discriminação contra
indígenas.
— Utilizando bem as câmeras,
ele dá ultimatos a autoridades, justificando seu autoritarismo religioso como
uma suposta justiça divina. É um discurso que fala a classes médias e altas
tradicionais e conservadoras — disse Arequipa. — Não é um discurso de tolerância
ou debate, é um discurso de brancos contra indígenas, um reflexo dessa carga
histórica.
Nas ruas, seguidores de
Camacho repetem seus gestos, rezando em manifestações ou citando trechos da
Bíblia. O racismo contra indígenas também é traduzido nesse embate religioso:
imagens que circularam nas redes sociais no fim de semana mostravam policiais
queimando a bandeira indígena sagrada Wiphala.
Na semana passada, Morales
chegou a denunciar o uso da religião por parte de seus opositores para
justificar agressões a indígenas.
— Usam a Bíblia, usam Jesus
Cristo, para humilhar irmãos em Santa Cruz. Causa raiva como eles usam a Bíblia
para discriminar os mais humildes — disse o então presidente boliviano.
Lei de liberdade religiosa
A maior parte da população
indígena boliviana, cerca de 60% do total, cultiva uma fé marcada pelo
sincretismo com o catolicismo. O culto à Pachamama, por exemplo, convive com a
adoração à Virgem de Copacabana, também chamada de Virgem de Urkupiña e Virgem
de Socavón.
Em 2001, 80% dos bolivianos
diziam-se católicos, mas o número vem caindo com o crescimento dos evangélicos
— 60% dos convertidos vieram do catolicismo. Hoje, estima-se que os católicos
ainda sejam a grande maioria, e representem cerca 70% da população. Em 2018,
Morales tentou criminalizar a evangelização com o artigo 88 do novo Código
Penal do país, que incluía no pacote de crimes que tratam do tráfico de pessoas
o “recrutamento para a participação em conflitos armados ou organizações
religiosas ou cultos”.
Pressionado, o presidente
acabou voltando atrás. Um ano depois, o próprio Morales aprovou uma lei de
liberdade religiosa, que deu aos evangélicos os mesmos direitos que os
católicos — até então as igrejas existentes nos país funcionavam de forma
clandestina.
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