Butantan: parceria entre Brasil e EUA resulta em vacina eficaz contra dengue - Para revisora científica dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, vacina pode beneficiar não só o Brasil, mas toda a América Latina
A primeira vacina contra dengue segura, eficaz em dose única
e produzida a baixo custo: esse é o resultado da parceria que já dura 15 anos
entre o Instituto Butantan e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em
inglês), dos Estados Unidos. O acordo, um dos primeiros firmados entre um
fabricante de vacinas brasileiro e uma instituição governamental
norte-americana, teve como objetivo combater um problema de saúde pública que
coloca em risco 4 bilhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS) – especialmente em países de baixa e média renda como o
Brasil.
Os estudos que possibilitaram essa colaboração internacional
datam do final da década de 1990, quando o Instituto Nacional de Alergia e
Doenças Infecciosas (NIAID) do NIH começou a testar diversos candidatos
vacinais de cada um dos quatro sorotipos do vírus da dengue. Após uma década,
os cientistas chegaram aos melhores candidatos para usar na formulação de uma
vacina tetravalente (contra DENV-1, 2, 3 e 4). E foi com base nessas cepas que
o Butantan desenvolveu o imunizante, que está na fase final de estudos
clínicos.
A pesquisadora e revisora científica do NIAID, Anuja Mathew,
que tem 25 anos de experiência no estudo da resposta imune à dengue, esteve no
Butantan entre janeiro e março, em intercâmbio científico organizado pela
Embaixada dos Estados Unidos. Em entrevista ao Portal do Butantan, a cientista
falou sobre a complexidade do vírus da dengue e o trabalho minucioso do
desenvolvimento da vacina.
Em 2009, o NIH cedeu as patentes das cepas ao Butantan, órgão
ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para que o Instituto
desenvolvesse a vacina no Brasil. A partir daí, foram mais quatro anos de
trabalho e mais de 200 experimentos para obter a versão final que seria
utilizada nos ensaios em seres humanos – desafio enfrentado pela equipe da
pesquisadora Neuza Frazatti Gallina, do Butantan.
“Os quatro vírus devem ser tratados separadamente: nos
processos de concentração, purificação e liofilização de cada monovalente, a
carga viral pode diminuir. Então você precisa calcular e prever essas perdas
para cada vírus, para chegar a uma candidata tetravalente segura e eficaz”,
explica Anuja. “O Butantan foi capaz de superar todos esses obstáculos e
formular a vacina para conduzir os estudos clínicos.”
Anuja também ressalta o alcance da rede de ensaios clínicos
construída pelo Butantan, que contou com16 centros de pesquisa, em todas as
regiões do Brasil, onde o estudo da vacina é realizado desde 2016. Em dois anos
de acompanhamento, o imunizante demonstrou 79,6% de eficácia, segundo estudo
publicado em janeiro na The New England Journal of Medicine.
Diferenciais da vacina
Segundo Anuja Mathew, a vacina possui uma série de
diferenciais. A dose única acelera a proteção integral da população, que não
precisa retornar para uma nova dose, enquanto o baixo custo facilita que o
imunizante chegue àqueles que mais precisam – residentes de países da América
Latina, África e Ásia, onde a doença é endêmica.
Outra vantagem é que aimunogenicidade é equivalente entre os
sorotipos da dengue. Embora ainda seja necessário avaliar a eficácia do
imunizante para DENV3 e DENV4, que não circularam no Brasil no período da fase
3 do ensaio clínico, as etapas anteriores da pesquisa indicaram que a vacina
induz anticorpos neutralizantes contra os quatro vírus.
Anuja ressalta, ainda, que a vacina é estruturada pelos
quatro sorotipos atenuados, ou seja, contém as quatro sequências originais, com
proteínas estruturais e não estruturais. Os demais imunizantes disponíveis
possuem somente as proteínas estruturais dos vírus da dengue, e usam como base
o vírus da febre amarela ou o DENV-2.
“Os vírus da dengue possuem proteínas estruturais e não
estruturais. As proteínas não estruturais são detectadas por linfócitos T,
induzindo importante resposta celular”, explica Anuja, que foi uma das
pioneiras em mostrar que proteínas não estruturais são alvos dominantes das
células T, em estudo publicado em 1998 no Journal of Virology. As células T
atuam na eliminação das células infectadas pelo vírus.
A cientista fez seu doutorado na Faculdade de Medicina da
Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, onde estudou a resposta
imune de crianças ao vírus da dengue a partir de amostras de sangue coletadas
na Tailândia. Na mesma universidade, atuou no Centro de Doenças Infecciosas e
Pesquisa de Vacinas e na Divisão de Doenças Infecciosas e Imunologia, dando continuidade
às pesquisas na área.
Para Anuja, a produção da vacina por uma instituição pública
no Brasil é vantajosa não apenas para o próprio país, mas para toda a América
Latina, que tem enfrentado epidemias de dengue. A incidência na região cresceu
de 1,5 milhão de casos acumulados em 1980 para 16,2 milhões entre 2010 e 2019,
segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). O licenciamento da
tecnologia da vacina do Butantan para a multinacional MSD também ajudará a
levar o produto para outras regiões do mundo.
“Eu cresci na Índia e vi um nível de pobreza muito difícil de
ser combatido. Para conseguirmos de fato combater as doenças tropicais
negligenciadas, como a dengue, é essencial um investimento de longo prazo em
vacinas, controle do vetor e educação em saúde pública”, destaca. “A ciência é
longa e difícil, e há pouquíssimas recompensas – não podemos esperar resultados
fáceis. A colaboração entre cientistas de todo o mundo é fundamental.”
Fomentando
novas parcerias
Anuja Mathew passou dois meses como consultora visitante no
Butantan para conhecer a fábrica e o processo de produção da vacina da dengue,
além de apresentar o trabalho do NIH às equipes do Instituto e discutir
melhores práticas de pesquisa e possibilidades de financiamento. Seu objetivo
era estreitar o relacionamento entre Butantan e NIH e estabelecer novas
parcerias entre os pesquisadores das instituições. A visita fez parte do
Programa de Intercâmbio Científico das Embaixadas dos Estados Unidos, que
promove a troca de conhecimento entre cientistas norte-americanos e
estrangeiros.
“O Butantan possui todas as instalações e expertise
necessárias para a produção de vacinas em larga escala e para o desenvolvimento
de pesquisas. O fato de fabricar o imunizante contra influenza para todo o
Brasil, por exemplo, é uma grande conquista. Certamente, é uma instituição com
a qual o NIH gostaria de continuar buscando colaborações”, diz a pesquisadora.
A instituição norte-americana apoia pesquisas brasileiras
desde a década de 1980, financiando projetos nas áreas de alergia, imunologia,
transplantes, doenças fúngicas, HIV, influenza, malária, tuberculose, entre
outras. Para incentivar essas colaborações, foi criado em 2014 o Programa
Colaborativo de Pesquisa Biomédica EUA-Brasil entre o Ministério da Saúde, o
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o NIH.
Parte do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo
norte-americano, o NIH é composto por 27 instituições públicas com diferentes
focos de pesquisa e financiamento, e é considerado um dos maiores financiadores
de pesquisa biomédica do mundo.
Estado de emergência
No início de março, o governo de São Paulo decretou
emergência em saúde pública para dengue, momento em que o estado atingiu 300
casos confirmados da doença por 100 mil habitantes. No Brasil, em 2024, o
número de casos prováveis já ultrapassa 1,5 milhão, com 450 óbitos, segundo o
Painel de Monitoramento das Arboviroses do Ministério da Saúde.
Se aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), a vacina do Butantan poderá ser disponibilizada futuramente no
Sistema Único de Saúde (SUS). O esquema de dose única facilita a logística e
adesão à vacinação – fatores importantes em um contexto epidêmico.
Os dados de eficácia da fase 3 do ensaio clínico, referentes
aos dois primeiros anos de acompanhamento, devem ser encaminhados à Anvisa no
segundo semestre de 2024, o que dará início ao processo de solicitação do
registro definitivo.
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