“O transporte público sendo queimado é só a ponta de um
problema gigantesco que a gente vive na zona oeste”, diz um morador* desta
região do Rio de Janeiro onde 35 ônibus e um trem foram queimados na
segunda-feira (24) pela maior milícia do estado. Ele conta que, no dia a dia, paga mais caro
por itens como galões de água e botijão de gás, além de não poder escolher
serviços de internet ou de TV a cabo, sendo obrigado a contratar aqueles que
são controlados pelas milícias.
“Até a água que a gente bebe é determinada, às vezes, pela
milícia. Eu posso comprar no raio da minha casa por um valor. Se eu trabalho em
outro bairro mais distante, e lá for mais barato, eu não posso levar para onde
eu moro por risco de sofrer alguma violência. Eles impactam muito o ir e vir
das pessoas. É muito complicado, complicado até de falar. É um silêncio que
parece calma, mas é medo”, afirma.
Na segunda-feira, os veículos foram queimados em reação à
morte de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, ligado à milícia e que foi morto
pela polícia. A reação do crime organizado é considerada pela Rio Ônibus o
maior ataque à frota da cidade já realizado em um único dia. A ação,
classificada de terrorista pelo governo do estado, chamou a atenção para as
milícias, cujo domínio cresce no Rio de Janeiro.
Atualmente, cerca de 20% da área da região metropolitana do
Rio de Janeiro é controlada por algum grupo armado, e as milícias dominam
metade dessas áreas, conforme o Mapa dos Grupos Armados, lançado nesta
terça-feira (13), em uma parceria do Instituto Fogo Cruzado com o Grupo de
Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF).
Em 16 anos, as áreas dominadas pelas milícias cresceram 387%.
De forma geral, as milícias são grupos paramilitares formados
tanto por servidores públicos da área de segurança quanto por civis da área de
segurança. Segundo o professor José Claudio Sousa Alves, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, as milícias desenvolvem-se a partir dos grupos
de extermínio, que se formaram a partir dos anos 1990. As relações foram se
tornando mais complexas e, de acordo com Alves, há acordos de milícias
inclusive com facções do tráfico. Não se trata de uma única milícia, são grupos
que inclusive rivalizam entre si. Por terem surgido de dentro do estado, são
organizações que guardam proteção e influência tanto dentro das forças de segurança
quanto na política.
Para Alves, os ataques aos veículos mostram a amplitude das
áreas sob domínio de tais organizações, que “vêm crescendo e aprofundando a
capacidade de atuação e estão sendo capazes de alterar o cenário muito
rapidamente, de fazer alianças e continuar com estrutura de poder”. “O poder
miliciano está muito mais amplo e muito mais penetrado na estrutura social e
geográfica de todo esse eixo da Zona Oeste, de Santa Cruz, Recreio, Barra,
passando todos esses territórios, manifestando o seu poder agora, poder muito
mais consolidado”, acrescenta o professor.
Aumento da
violência
A tensão nos territórios controlados por esses grupos
prosseguiu nesta terça-feira. “Enquanto a gente está falando, a polícia está
passando. É tensão que não cessa. Estão mandando o comércio fechar. Os
comerciantes, além de pagar sobretaxa, sofrem violências, e esse tensionamento
agora interfere na vida econômica das famílias. Quem tem comércio, quem vende
um lanche, quem tem sorveteria, uma coisa pequena, está fechado neste momento.
Bem cruel a nossa vida nesse cenário”, diz o morador da zona oeste.
A apreensão permanece no dia a dia, quando as pessoas
precisam pagar uma taxa mensal para que seja feita a segurança local. “As
pessoas das casas pagam taxa mensal de segurança, que a gente não sabe que
segurança que é, na verdade. É o inverso disso. Pagam uma taxa para não sofrer
uma violência de quem lhes cobra.”
Dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que o número de
mortos a tiros na zona oeste mais do que dobrou, registrando aumento de 127% de
2022 para 2023. De janeiro a outubro deste ano, foram 248 mortes, contra 109 no
mesmo período de 2022. O número de tiroteios aumentou 55%: foram 475 de janeiro
a outubro de 2022, e 737 de janeiro a outubro de 2023.
De acordo com o instituto, as chacinas também dispararam.
Foram quatro chacinas entre janeiro e outubro de 2022, que deixaram 12 mortos.
No mesmo período deste ano, foram oito casos, com 50 mortos. Enquanto, em 2022,
houve uma chacina policial, com três mortos, em 2023, foram oito chacinas
policiais, com 28 mortos.
Segundo o coordenador do Instituto Fogo Cruzado no Rio de
Janeiro, Carlos Nhanga, a relação entre a milícia e o Estado é o que mais
dificulta o combate a esses grupos. “O fato dela estar intrinsecamente ligada
ao Estado hoje é o maior problema do enfrentamento às milícias e ao crime
organizado como um todo. Você tem agentes com informações privilegiadas do
poder público cedendo essas informações para o crime organizado. É muito
difícil imaginar que haja um combate de fato efetivo para frear a atuação da
milícia”, diz Nhanga.
Combate às
milícias
Após os ataques, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio
Castro, determinou que toda a força policial do estado esteja nas ruas, com o
uso de viaturas, carros blindados, helicópteros e drones. Após os incêndios
criminosos de segunda-feira, 12 pessoas foram detidas. Segundo Castro, seis
foram liberadas por ausência de “indício de autoria e materialidade”.
De acordo com a polícia, o homem morto, que desencadeou os
ataques, conhecido como Faustão, era o número 2 na hierarquia da milícia em
Santa Cruz e Campo Grande, na zona este. O líder Zinho (Luis Antônio da Silva
Braga), líder da mesma organização, Tandera (chefe de outra milícia) e Abelha
(líder do Comando Vermelho) são procurados pela polícia, informou o governador.
Tanto Alves quanto Nhanga defendem ações estruturais para enfrentar
o crime organizado.
A busca por líderes de determinadas organizações não vai,
sozinha, solucionar a questão, afirma Nhanga. “Ano após ano, tanto o Estado
quanto a imprensa elegem ali o bandido mais procurado e mais perigoso do Rio de
Janeiro e, como consequência disso, temos várias operações, tiroteios, mortes,
impactos nos serviços públicos durante essa caça a um título que se renova
anualmente”, diz. “São diferentes nomes, mas sempre com o estado operando como
mesmo método, individualizar, personificar toda uma estrutura criminosa numa
mesma pessoa para dar uma sensação de combate ao crime organizado.”
Segundo o coordenador do Instituto Fogo Cruzado, dados como
os levantados pela instituição podem ser úteis para desenhar políticas públicas
voltadas para as áreas de maior crescimento do crime organizado e para traçar
tendências que podem ajudar o estado.
O professor Alves diz que, para haver uma solução, primeiro,
seria necessário reconfigurar a estrutura da segurança pública, indo além do
conflito bélico, que, segundo ele, tem sido a política pública praticada. “Tem
que mudar a raiz dos confrontos, tem que dialogar com a população de cada
região. As pessoas têm que se transformar, elas próprias, em autoras de
políticas públicas que vão ajudar a resolver seus problemas. Não podem ser
meramente massa de manobra eleitoral. É preciso mudar a forma de lidar com a
população, transformá-la em uma população ativa.”
Alves defende ainda políticas voltadas para a cultura, para
atividades que deem perspectiva de vida e de renda aos jovens, especialmente
nas regiões mais pobres. Isso fará com que eles sejam menos cooptados pelo
crime organizado. “Se não caminha nessas direções, não vai resolver esse
problema nunca. Pode matar quantos você quiser dizendo que está resolvendo o
problema. Isso é uma balela, é uma mentira. Você está é empurrando o problema,
ampliando o problema”, diz o professor.
*O morador da zona oeste, entrevistado, não foi identificado
por questão de segurança.
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